Capítulo 20 - Viva

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 Três dias depois. Julieta ainda estava com algumas cicatrizes no rosto por conta dos cacos de vidro e continuava tendo que usar muletas por conta de uma fratura no fêmur. Mas, apesar disso, estava muito melhor do que esteve naquele mausoléu infame, que alguns ainda ousam chamar de 'Ilha Pantheon'.

Pressionando a campainha estava dona Júlia. Tinha já se recuperado quase totalmente das facadas que recebeu no carro, afastando-se da imprensa e da polícia até ser esquecida como 'a suposta assassina'.

— Olá, Julieta.

— Oi, dona Júlia. Quer entrar?

— Claro.

Seguiu pacientemente para dentro da casa da policial, antes de se sentar no confortável sofá e começar:

— Eu sabia que era da minha família. Só não queria admitir. Se eu tivesse respondido aos meus impulsos, talvez... — Lacrimejou. — Talvez a Camila e o Thales ainda estivessem vivos.

— Dona Júlia. Existem certas coisas que, mesmo se desse pra evitar, não tem mais conserto. Eu não acreditava em fantasmas e agora não vou poder mais morar sozinha. A vida é sarcástica, sádica. Eu vi tanta coisa como policial, mas nunca algo como o que aconteceu nesses meses. Todos os meus amigos, morrendo um por um, e eu não pude fazer literalmente nada pra poder salvar qualquer um, que fosse. Às vezes eu também penso que algumas mortes são culpa minha. A Letícia, a Camila, a Cecília... Mas, no fundo, eu vejo que fiz o máximo que pude pra ajudar eles, e se não deu certo, é porque não tinha como dar. — Deu um gole d'água. — Você viu o fantasma por sonhos e visões, eu imagino. Eu vi o fantasma na vida real. E tem alguma coisa muito perturbadora nele, sabe? Não é só o clássico 'olha, ele é assustador'. Acho que são os olhos, sei lá.

— Os olhos?

— Os olhos de pessoas possuídas não são vazios como as pessoas pensam que são. Selena Murphy não é um monstro, um demônio infernal que tem como único propósito destruir a humanidade. Ela já foi uma pessoa, há não muito tempo atrás. Ela já pensou, comeu, falou como todos nós. E um dia morreu. Às vezes eu me ponho no lugar dela. O quão miserável deve ser passar uma eternidade interagindo com o mundo humano, mas sem jamais poder voltar a ele? Eu imagino a dor que ela sente, sabe? Mesmo que ela tenha cometido todos aqueles assassinatos da Ilha Pantheon, que, aliás, eu comecei a realmente suspeitar que foram assassinatos mesmo, ela ainda é um ser pensante.

— Policial, ela matou a minha filha!

— Essa mulher é uma degenerada. Não só na morte. Eu me pergunto, será que eu ou você seríamos bons e gratos se morrêssemos. Quer dizer, aonde nós iríamos? Ficaríamos presas na Terra? Porque, se fosse assim, em pouco tempo eu também iria surtar como Selena.

— Não fale isso!

— Mas é, dona Júlia. Infelizmente é. Eu já vi todo tipo de bandido e marginal, desde os injustiçados que são vítimas de um governo desigual até os mandantes das favelas e patriarcas do tráfico. Mas eles têm sempre uma coisa em comum: estão vivos. Têm preocupações mundanas, querendo ou não, sabe? Mesmo os que estão marcados pra morrer, eles ainda valorizam a vida, sentem uma breve esperança de poder sobreviver. Agora, que esperança pode ter uma pessoa que já tá debaixo da terra há cem anos?

— Você tem razão — Suspirou. — Eu te entendo.

— Isso não é nem o que mais me assusta. Acho que, de longe, o que mais me assusta é um detalhe que passou um tanto quanto despercebido pela polícia...

— Que detalhe?

— Encontraram os materiais usados pro ritual no quarto de Rebeca. Mas o ritual não precisava ser feito no quarto dela. Isso porque ele já foi feito, no hotel. Eu me lembro que, quando acordei, vi só o corpo da Rebeca e um frasco de vidro quebrado, cheio de sangue.

— E o que isso quer dizer?

— Quer dizer, dona Júlia, que a principal característica que fazia a Selena tão distante de nós agora se foi. Ela, agora, é gente como a gente. Tá por aí, entre as bilhões de pessoas do mundo, e sabe-se lá qual é a próxima vítima.

— Que horror! Nós temos que impedir que mais mortes aconteçam!

— Impedir? Agora eu nem sei mais o que podemos fazer. Acho que, toda noite quando eu for dormir, vou sentir o suspiro dela pela minha nuca. Todo dia, quando for tomar café, vou ouvir o suspiro dela nas copas das árvores. Toda tarde, quando eu for na academia, vou achar uma pessoa muito parecida com ela, que na verdade não era quem eu tava pensando. E em todos esses momentos eu vou saber que, em algum lugar do mundo, ela tá andando normalmente, como se nada tivesse acontecido.

Uma solene e lenta pausa. Júlia olhou para os lados.

— Bom, Julieta, acho que estou bem. Até mais.

— Até mais, senhora. Sinto muito por qualquer coisa.

Irreverente, Cardoso saiu a passos rápidos, batendo a porta enquanto descia as escadas e partia na rua repleta.

Seus pensamentos estavam tão lotados quanto a estrada. A cada segundo parecia que sua mente iria explodir em frangalhos de ideias. Nada mais parecia certo. Depois da morte de tantas pessoas, depois da ressurreição de um fantasma, depois de saber que a própria filha era uma assassina, nada mais parece tão certo.

Enquanto olhava para o chão, imersa nas teorias intensas que fazia sobre Selena Murphy, os acontecimentos da Ilha Pantheon e a ressureição do fantasma, esbarrou numa jovem moça.

— Ah, sinto muito — balbuciou, distraída. — Estou com a cabeça cheia hoje, moça.

— Sem problemas, senhora — E as duas seguiram caminho.

A moça olhou para Júlia uma vez mais, enquanto esta rumava seu caminho normalmente. Deu um breve sorriso enquanto suas sobrancelhas franziam-se em direção ao nariz. Ela era ninguém mais, ninguém menos do que a própria e infame Selena Murphy.

Depois de perder Júlia de vista, suspirou. Agora, de uma vez por todas, Selena finalmente podia dizer que estava em carne e osso.

Em Carne e OssoOnde histórias criam vida. Descubra agora