I. Olhos de Ressaca

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Eu sabia que era bom demais para ser verdade. Não tinha nem um mês desde que eu tinha começado o meu ofício e já estava por um fio. Da linha, no fim. O gerente tinha convocado todos os funcionários naquela tarde, mas eu sabia bem que não era para nenhuma plêiade.

Oferta e demanda, capital de giro, ativo, passivo, fluxo de caixa e redução de custos. De tudo isso, eu apenas entendi uma coisa: que alguém não receberia mais o pão nosso de cada dia. Um de nós iria para o olho da rua. Escorregar para o ralo como a chuva que descia pela sarjeta.

Eu tinha uma irmã de sete anos de idade para cuidar, o zelador estava quase se aposentando e a garçonete era casada com um dos cozinheiros — juntos tinham dois filhos. E só Deus sabe onde está o outro sócio numa hora dessas, porque, segundo boatos, são dois patrões, como se já não bastasse um.

O chefe — um deles — nos deu a notícia ao meio-dia, no começo vespertino do meu expediente. E essa escolha peculiar de adiantar o inevitável poderia ter dois distintos efeitos possíveis: ou fazer-nos, pobres coitados, trabalhar ao máximo para alimentar uma átima de esperança de não nos queimarmos, ou ter-nos jogando a toalha antes mesmo do veredito final.

Enquanto contemplava os meus arredores, limpava uma miríade de taças de bocas e bustos distintos — ócios do ofício. De vez em quando, servia algum cliente que tomava um dos sete bancos vazios à frente de meu balcão.

Parar para olhar.

E apenas observar.

É tudo que me resta.

A sala de descanso jazia morta com o silêncio dos empregados. E não que isso me fizesse falta. Os risos e as brincadeiras nunca me foram tão chamativos, porque para ser tão honestamente sincero, nunca amei estar na berlinda. E na única vez que tomei a mim essa plena e egoísta atenção, cobraram-me de antemão dívidas que pago até então.

Não se coloque nos holofotes se não tem talento para brilhar.

De que adianta lamentar aquilo que eu não posso controlar? Era um trabalho em que não podia muito além me esforçar, porque não havia espaço para me destacar.

Enfim, apenas aproveite que já está aqui e faça um teste.

Estenda o braço e segure uma taça cheia d'água por um tempo. Por ora, parece leve e agradável. Após uma hora, é como se você estivesse segurando um lingote de chumbo. Não foi a água que agregou deutério nem trítio em sua composição para fazer-se tão pesada, a resposta é bem mais simples que isso.

Você simplesmente não aguenta mais o peso do próprio braço.

É muito melhor largar do que insistir. Então, por que é que nos apegamos às coisas que nos fazem mal? Não é mais fácil abandonar o barco do que fazer uma tempestade num copo d'água?

Mesmo assim, aqui estou eu, sobre uma jangada vagabunda. Pairando no olho do furacão com uma bússola sem ponta e um sextante de faz de conta.

Sim, sou um tremendo de um hipócrita, mas não é porque não me alinho com aquilo que digo que sou um mentiroso. Ainda estou correto. Sei o que é bom para você, mas sou péssimo em seguir conselhos. Até os meus próprios, então faça o que digo, mas não faça o que eu faço.

É melhor esquecermos o de sempre.

E falar sobre novidades:

Uma mulher nova apareceu à noite daquele dia — uma face fora do acervo de rostos o qual já estava devidamente acostumado. Diferia dos clientes de sempre: dos velhos assíduos e dos assalariados perdidos. Uma moça de cabelos lourejantes e olhos azuis, de terno e gravata pretos. Colarinho branco e um crucifixo dourado. Sardas sarapintavam o seu rosto.

O AnacronistaOnde histórias criam vida. Descubra agora