IX. Noite em Claro

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E ela realmente não apareceu no trabalho nem uma única vez desde aquele dia até então, este agora sendo o dia antes do combinado. Quarta-feira. Não no sentido que hoje ela tenha resolvido aparecer. Nada disso. Não. Apenas venho dizer que continuo esperando e que este é o dia o qual antecede o momento do instante que eu nego esperar.

Ou ter esperado.

A pior mentira de se mentir é a verdade que se esconde de si mesmo.

Porque para alguém que nem mesmo costumava arrancar as folhas do calendário pregado na geladeira fissurar-se tanto no contínuo fluxo do tempo ao ponto de agourar o passado para entender o presente esquecendo-se das pausas dos descansos das folgas tão somente para preenchê-las com um futuro que não é de agora e que ainda há de ser para cobrir as lacunas do tempo com algo que entrementes não o iria saciar a fome que se sente no instante é uma metamorfose sem casulo súbita e irreal.

Respire.

Senão você perde o fio da meada.

É como piscar os olhos e levantar de um coma. Assim como o piloto automático condensa uma inconsciência para o avião que o impede de cair, a rotina é uma enfermeira que te cuida para que não venha a falecer antes do momento em que você decide acordar. Comer, banhar, trabalhar e dormir.

Isso é morrer o hoje vivendo pelo amanhã.

Você está morto agora?

Porque eu jazia sob sete palmos de terra como a cápsula do tempo mais precoce do mundo. E me revirava debaixo dos lençóis, tentando fechar os olhos para ver a manhã raiar. Mas não fui apenas eu aquele quem teve que arcar com os males da insônia naquela noite.

— Matheus? — Laura murmurava o meu nome. — Matheus!

Sua voz me chamava do limiar da porta. E o tom tremelicoso de seus sussurros foi o suficiente para me desenterrar. Levantei-me da cova-cama num ímpeto e renasci.

— Laura? O que foi, menina?

Seus olhos marejavam enquanto ela corria até mim, arrastando seus cobertores pelo chão. Ela caminhava na ponta dos pés, sem olhar para trás nem a nada senão a mim.

— Um pesadelo? — perguntei.

Ela abanou a cabeça, secando suas lágrimas.

— Quer dormir aqui comigo? — sugeri.

E ela assentiu mais uma vez, imitando-se no recente passado. Laura escalou pela cama e arrastou-se até o meu lado. Mas somente quando suas mãozinhas apertaram as minhas costas num abraço, foi que um calafrio me desceu o corpo como um choque de realidade.

Sei que cantores aprendem a controlar a voz de peito, de garganta, de diafragma e talvez muitas outras coisas que meu vago conhecimento desconhece. Embora eu não seja nenhum cantor, eu deveria aprender a mediar as vozes de minha cabeça e encontrar alguma harmonia nos pensamentos.

— Laura, posso te fazer uma pergunta?

Desabrochando do casulo que fizera com os lençóis, ela voltou-se para mim e respondeu:

— Pode sim.

— Você gosta da nossa vida?

Ela revirou os olhos e apertou as sobrancelhas, rindo. Nem parecia que há pouco estava quase aos prantos ao meu lado. Aquela pergunta tinha muito mais importância que a cerimônia que a dei.

Afinal, implicava na última afirmação de minha existência. Se eu tivesse falhado em fazê-la feliz depois de tanto sacrifício, consumava-se que eu estava errado sobre tudo que ousei enfrentar. Que aqueles dois soberbos estavam corretos. E eu era mesmo fatalmente destinado a todo tipo de fracasso.

— É claro que sim! — ela respondeu. — Minha amiga disse que queria ter um irmão como você, que compra brinquedos e faz misto quente.

Um suspiro escapou-me pelo nariz, mas o pensamento se engasgava na garganta e ecoava pela cabeça. Minha existência era tão frágil ao ponto de ser sustentada pela opinião de uma criança de sete anos? E tão incerta para se validar com a contingente promessa daquela mulher?

Não que essas fossem coisas más, porque seria uma indiscreta mentira dizer que nada disso me alegrava. Elas me aferravam à realidade. Eu resguardava minha irmã sob minhas asas, retribuindo o seu enlace.

Porque tu és responsável por tudo aquilo que cativas.

— Era só isso que eu queria ouvir — murmurei. — Não se esqueça de rezar antes de dormir, amanhã a gente tem visita cedo.

— É a sua namorada? — indagou ela.

Ah, vocês crianças.


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