O jornal nacional anunciava a mais recente tragédia na televisão: uma bala perdida colocou um aniversariante em estado grave. Era estranho pensar que eu estava tendo o dia da minha vida enquanto esse tipo de coisa acontecia ao mesmo tempo.
E pensar que em qualquer instante, num momento inoportuno, tudo que você conhece e tem por ciência poderia ruir num piscar de olhos. O impacto temerário de um disparo sem direção. O som da pólvora explodindo na câmara e você já era. Antes mesmo de ouvir. Alguns modelos disparam projéteis mais rápidos do que o som.
Mas se fôssemos viver todos os dias com medo da morte, vivê-la-íamos muito do que a própria vida. Uma pessoa que está sempre pensando não tem nada para ponderar além dos próprios pensamentos. Confunde a realidade com ideias, símbolos e possibilidades.
E se esquece do que é real.
As caixas de pizza que se dobravam na lixeira. O retrogosto da calabresa e do queijo. Os murmúrios da televisão e os murmulhos da chuva. O petricor e o mormaço que cheiravam das calçadas quentes lá de fora. O frescor na pele depois de um banho merecido.
— Ainda está acordado, rapaz? — disse ela. — As outras duas já foram dormir, não foram?
Anelise assistia à televisão aberta, esperando pela novela das nove com uma xícara de chá.
— Sem sono — repliquei. — Só queria tomar um pouco de ar fresco antes de tentar descansar de novo.
— Nessa chuva? Nesse mormaço?
Ela agarrou o controle remoto e diminuiu o volume da tevê.
— Nada disso, sente aqui — convidou-me ela. — Estava precisando de um tempo para falar umas coisas com você.
E tinha como eu recusar? Assenti em silêncio, tomando um assento no canto distante do sofá.
— Não é só sobre minha filha, se é isso que você está pensando.
— É tão óbvio assim? — brinquei.
— Depois que eu vi como você olha para ela? Consigo saber quando alguém está apaixonado só pelo olhar.
— Não é nada muito difícil de perceber, creio eu.
— É verdade, e Carolina também só fala de você para mim. Fazia um tempo não a via sorrir desse jeito.
Não podia negar e dizer que não era consciente disso. Para alguém que se afasta tanto do vício e prioriza a lucidez como eu, não podia fingir ou ignorar o que sentia por ela. Ainda assim, ouvir alguém dizer aquelas coisas em voz alta, fora da caixinha dos meus pensamentos, envergonhava-me.
Nada havia, de fato, mudado.
Os problemas ainda eram os mesmos, senão piores ainda.
Mas por que tudo parecia tão diferente?
— Fico lisonjeado — respondi, coçando minha cabeça com um sorriso acanhado. — É bom saber que você me vê assim.
— Um rapaz trabalhador, honesto e que respeita minha filha? Só faltava você ser rico, aí você seria o sonho de toda mãe.
Gargalhamos juntos, baixinho.
— Mas brincadeiras à parte... é aqui que preciso saber de uma coisa muito importante.
— Diga.
— Até onde você pretende ir com ela? Digo... o quão sério é realmente esse negócio entre vocês? Conheço minha filha e sei que ela é de se iludir bem fácil com as coisas.
— O céu é o limite — respondi. — Se tudo correr bem, não tenho nenhum problema em compartilhar o resto da minha vida com ela.
Sorridente, ela fechou os olhos e suspirou um alívio profundo, descansando a mão sobre sua fronte. Ela tomou um gole de sua xícara e se recompôs, retomando a seriedade.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Anacronista
Roman d'amourMatheus, um jovem bartender nascido no Ceará, trabalha diariamente num restaurante em Santa Catarina para sustentar sua irmã mais nova após o divórcio de seus pais. Distante de seus amigos, preso em uma rotina esmagadora e desanimado diante de seu f...