XIII. A Montanha Mágica

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O jornal nacional anunciava a mais recente tragédia na televisão: uma bala perdida colocou um aniversariante em estado grave. Era estranho pensar que eu estava tendo o dia da minha vida enquanto esse tipo de coisa acontecia ao mesmo tempo.

E pensar que em qualquer instante, num momento inoportuno, tudo que você conhece e tem por ciência poderia ruir num piscar de olhos. O impacto temerário de um disparo sem direção. O som da pólvora explodindo na câmara e você já era. Antes mesmo de ouvir. Alguns modelos disparam projéteis mais rápidos do que o som.

Mas se fôssemos viver todos os dias com medo da morte, vivê-la-íamos muito do que a própria vida. Uma pessoa que está sempre pensando não tem nada para ponderar além dos próprios pensamentos. Confunde a realidade com ideias, símbolos e possibilidades.

E se esquece do que é real.

As caixas de pizza que se dobravam na lixeira. O retrogosto da calabresa e do queijo. Os murmúrios da televisão e os murmulhos da chuva. O petricor e o mormaço que cheiravam das calçadas quentes lá de fora. O frescor na pele depois de um banho merecido.

— Ainda está acordado, rapaz? — disse ela. — As outras duas já foram dormir, não foram?

Anelise assistia à televisão aberta, esperando pela novela das nove com uma xícara de chá.

— Sem sono — repliquei. — Só queria tomar um pouco de ar fresco antes de tentar descansar de novo.

— Nessa chuva? Nesse mormaço?

Ela agarrou o controle remoto e diminuiu o volume da tevê.

— Nada disso, sente aqui — convidou-me ela. — Estava precisando de um tempo para falar umas coisas com você.

E tinha como eu recusar? Assenti em silêncio, tomando um assento no canto distante do sofá.

— Não é só sobre minha filha, se é isso que você está pensando.

— É tão óbvio assim? — brinquei.

— Depois que eu vi como você olha para ela? Consigo saber quando alguém está apaixonado só pelo olhar.

— Não é nada muito difícil de perceber, creio eu.

— É verdade, e Carolina também só fala de você para mim. Fazia um tempo não a via sorrir desse jeito.

Não podia negar e dizer que não era consciente disso. Para alguém que se afasta tanto do vício e prioriza a lucidez como eu, não podia fingir ou ignorar o que sentia por ela. Ainda assim, ouvir alguém dizer aquelas coisas em voz alta, fora da caixinha dos meus pensamentos, envergonhava-me.

Nada havia, de fato, mudado.

Os problemas ainda eram os mesmos, senão piores ainda.

Mas por que tudo parecia tão diferente?

— Fico lisonjeado — respondi, coçando minha cabeça com um sorriso acanhado. — É bom saber que você me vê assim.

— Um rapaz trabalhador, honesto e que respeita minha filha? Só faltava você ser rico, aí você seria o sonho de toda mãe.

Gargalhamos juntos, baixinho.

— Mas brincadeiras à parte... é aqui que preciso saber de uma coisa muito importante.

— Diga.

— Até onde você pretende ir com ela? Digo... o quão sério é realmente esse negócio entre vocês? Conheço minha filha e sei que ela é de se iludir bem fácil com as coisas.

— O céu é o limite — respondi. — Se tudo correr bem, não tenho nenhum problema em compartilhar o resto da minha vida com ela.

Sorridente, ela fechou os olhos e suspirou um alívio profundo, descansando a mão sobre sua fronte. Ela tomou um gole de sua xícara e se recompôs, retomando a seriedade.

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