IV. Santa Ceia

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Sim, uma inteira de frango, mas sem catupiry. Só frango é mais barato, mas se bem que hoje é uma ocasião especial.

Sei, também, que pedir a mais redonda das culinárias italianas não era nada reto e ortodoxo para a tradição cristã. O frango, pelo menos, era um parente próximo do peru, então dava pra dizer que, de tabela, forçando a barra e fazendo vista grossa, quebrava o galho.

Mais de cem reais um peru?

Jesus Cristo.

Pelo menos o perdão é de graça.

No instante em que abri a porta, ela já tinha capotado de sono no sofá, enquanto passava algum desenho animado no televisor. Mas as dobradiças acabadiças e enferrujadas rangiam um arranho agudo e insuportável — como giz branco em quadro negro. Era uma porta de madeira inchada, de tinta descascada. Riscava o chão quando abria e novamente quando cerrava.

Laura, com esse estrépito escandaloso, abriu os olhos e virou-se para mim num susto. Eu segurava uma caixa octogonal de papelão bege e uma sacola plástica com uma modesta garrafa de refrigerante.

— É picsa? — perguntou ela, esfregando os olhos.

— Pizza — disse. — Se fala pizza.

Como sempre, ela não deu nenhuma atenção à correção — era por isso que sempre continuava a errar. Mas quem se importa com a minúcia da pronúncia? Eu não deveria estar pensando no correto quando tudo estava errado. É uma cortina de fumaça: não sabia se era já efeito do vinho, mas eu queria somente esquecer.

Mas não, é muito provável que não tenha nada a ver. Vamos tão apenas comer e aproveitar o resto da noite. Só eu e ela.

A tampa do refrigerante chiava o gás gelado quando abria, e a tampa da caixa molhava por dentro com o vapor morno e abafado da pizza.

É sempre bom assistir a algo enquanto comemos. Eu não entendo que tal mágica é essa que nasce com a saciedade da fome. Um raio de desclarividência conhecido como televisão.

É culpa da sociedade e do cansaço; mas o prazer aprimora as experiências parcas e pacatas como cloridrato de cocaína. A modernidade é líquida para podermos injetá-la na veia com uma seringa. Para que servem os anjos? Se a felicidade mora aqui comigo até segunda ordem?

"Bom é vício. Mau é saudável." É o que pensam os males, os puritanos, o bom senso e os terroristas nutricionais.

— Matheus? — murmurou ela. — Você vai comer o resto?

Dois pedaços sobravam.

— Por quê? — perguntei.

— Queria guardar para amanhã.

As pálpebras pesavam com o cansaço.

— Mais tarde, você quis dizer? — Olhei para os ponteiros de meu relógio doado pela morte do meu avô. — Já passou da meia-noite.

Hoje já é o amanhã.

E o amanhã é hoje, porque a eternidade é o estado do tempo que é.

O futuro é o presente de logo. E o passado, o de então. O agora é o momento perene das coisas que são. Este é momento contundente em que nos damos conta que o depois já é o agora, porque a futura frase no fim do parágrafo é a que você está lendo neste exato momento.

Anacronismo é tentar conciliar o passado e o futuro no presente.

Uma obsessão em dominar o que não podemos controlar.

O mundo revolve em volta do domínio. Um revólver invisível apontado atrás da cabeça de todo mundo. É controlar ou ser controlado. Somos o homem, o cavalo e as rédeas.

Ego, id, superego, além-homem e Clark Kent.

Tudo é uma busca por controle.

Seja pelo autocontrole ou pelo controle remoto.

Num piscar de olhos, eu já estava na cama. Laura dormia enquanto eu encarava os nove números anotados em azul esferográfico, que no soturno escuro do quarto noturno cintilava um preto-coturno.

Era agora ou nunca. Mas não talvez o agora de hoje. Quiçá o agora de amanhã. Ou, quem sabe, até mesmo o de jamais. Eu ainda tinha muito mesmo o que pensar a respeito, porque, querido diário, havia um tempo desde que não tomava uma taça de vinho.

Tire suas mãos de mim

Eu não pertenço a você

Não é me dominando assim

Que você vai me entender.

E não me lembrava que as uvas eram fermentadas com agora, embora ainda com um retrogosto de outrora. Tudo o que é bom vicia. Deve ser assim que ela escapa — numa sala de abraços onde ninguém te solta.

Quer sair? Boa sorte.

É por isso que eu não saio da primeira taça.

Mas, por alguma estranha conexão, tão racional e verdadeira quanto as promessas feitas em campanha eleitoral, eu sabia de uma coisa.

Mesmo que eu ligasse para aquela mulher nessa madrugada de natal, tinha plena certeza de que não ficaria no vácuo. Eu nunca saberei explicar o porquê, mas ela iria com certeza me responder.

Eu sabia que ela ia.

Eu sei que ela vai.

De novo, está tudo nas minhas mãos.

A faca e o queijo.

A caneta e o papel.



O AnacronistaOnde histórias criam vida. Descubra agora