VI. Réveillon

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Um capacete preto, outro rosa. A brisa úmida de uma manhã nublada esvoaçava meu casaco. Laura encaixava suas mãos em minha cintura enquanto viajámos para a capital — o que será que passa dentro de sua cabeça? Nesse seu pequeno e inocente mundo cor-de-rosa?

Amarelo, vermelho, verde.

Pare.

Proibido o retorno.

Siga em frente.

Por que não vira à direita?

Uma hora de viagem sobre duas rodas. Os prédios de Florianópolis ao horizonte erguiam-se como os retângulos dos gráficos e das tabelas. Os paralelepípedos de arestas pontilhadas. A geometria espacial, linear e analítica.

Situação-problema.

Um trabalhador ganha dois salários mínimos de R$ 1.200 por mês e sustenta um dependente sem renda. Se o custo de vida em sua cidade é de R$ 1.400 por pessoa, então quantos porcentos abaixo do custo de vida está a sua renda familiar mensal?

Letra "C" de Cristo.

Deus nos acuda.

Não saia de perto da tia, não dê trabalho para comer e não fale com estranhos. Mas, antes de sair, a tia Lurdes, solteirona e solidária, puxou-me a manga e me convidou. Por que não passar um tempinho junto com a família?

— Não. — Porque, dessa vez, eu queria tentar algo diferente, tão somente pelo puro egoísmo que é pensar em mim mesmo.

Siga em frente.

Sem atalhos, ninguém vai querer pagar as multas.

Volte para casa.

Descanse até o meio-dia.

Você está comigo no Erudito.

E agora, neste instante de momento em que a consciência condensa a ideia intangível do tempo, os ponteiros avançavam devagar, tímidos e acuados pelo meu constante olhar. "Parem de me encarar!" Mas por que, quando cubro os relógios com adesivos, os ponteiros voltam a correr?

Não sei, é política da empresa não danificar os objetos de trabalho.

Condenado a ver o tempo passar e acanhá-lo com meu olhar.

"O homem absurdo é aquele que não se separa do tempo."

E os ponteiros rastejavam, fazendo hora com a minha boa vontade de dá-los a devida privacidade. Mas o momento chegava. Estávamos prestes a comemorar a volta número dois mil e vinte dois em torno do sol desde o nascimento de Cristo.

E o coração pulsava, cuspindo-se para fora da garganta. Ela não saia de minha cabeça, nem o retrogosto daquele vinho de minha língua.

Carolina se esgueirava pelas frestas de minha lucidez como um corte rápido, um impacto contundente. Minado pela expectativa, eu fincava meus olhos além da porta e das paredes de vidro. A fachada translúcida estragava qualquer surpresa.

"Onze e meia da noite."

Seu vulto hipnotizante capturou meu olhar no imediato instante em que adentrou os lindes de minha visão. Ela se espreitava com um vestido preto sobre sua pele pálida, cobrindo e descobrindo-se com um veemente e seduzente decote em "V" profundo e maiúsculo.

Um coque prendado e duas curtas e separadas mechas de cabelo que desciam de sua franja como pêndulos ondulados. Ladeavam as suas bochechas rosadas de maquiagem. Eu nunca tive um tipo exato para mulheres até aquele pequeno fragmento de tempo.

Ela abriu um sorriso com o encontro de nossos olhos; mas antes de tomar a frente de meu balcão, o gerente a abordou. Ele que, vez ou outra, tentava persuadir os clientes a voltarem para o estabelecimento — quase como um instinto de sobrevivência. Volte sempre. Obrigado pela preferência!

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