III. Sexta-feira

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Eu sempre preparava todas as refeições com antecedência. Os biscoitos de chocolate e suco de polpa de cajá ficavam para a merenda da tarde. Afinal, como eu deixaria uma criança em fase de crescimento com fome?

Ainda assim, doía no meu coração ter que trazê-la do colégio às onze e fazê-la esperar em casa até eu voltar além da meia-noite. Uma menina de oito anos sozinha. Onde já se viu isso? Mas não era culpa minha, não.

As coisas tão somente são o que são.

E este era um daqueles dias supersticiosos em que parava para contemplar as impossibilidades mais mórbidas dentro e fora da possibilidade. Será que ela está mexendo com eletricidade? E se ela passar mal? Mesmo no trabalho, eu não conseguia ficar sem ligar uma ou duas vezes para o telefone de casa.

E salvar o gato dentro da caixa.

Esperava sempre pelos momentos e os intervalos nos quais a ausência dos clientes me deixavam uma breve folga. Cuidado com as tomadas, não abra a porta para estranhos e não toque no fogão, repetia pelo telefone.

Como poderia gente tão morta comemorar o Nascimento? Alguns funcionários olhavam-me o gorro e despendiam uma risada inocente; mas somente por isso ficava. E a sete palmos do chão, o silêncio jazia. Haviam tocado as sete trombetas? Porque os sete bancos vazios à minha frente foram arrebatados em horário de pico.

E eu fiquei para a divina comédia.

"Cabernet Sauvignon."

Ninguém tão são despenderia uma noite dessas senão com a família. Quem iria dizer a outro alguém que havia passado a véspera enchendo a cara num barzinho medíocre? O status é o substituto do capital. Somente um ninguém com tamanha pouca-vergonha como aquela mulher se submeteria a isso.

Essa é a sua vida, e ela está acabando um minuto de cada vez.

Tyler Durden.

E, falando no diabo, ela apareceu. Como eu já disse ser hipócrita, não um mentiroso, não poderia negar que me surpreendi ao vê-la novamente à noite de uma sexta-feira, na véspera de natal. Esse não era o combinado. Errática com era, então o que mais eu esperava de seu acordo?

Bom... tanto faz.

O estalido de seu salto soava enquanto ela se aproximava, vestindo o mesmo terno alvinegro que se tornou a ser de praxe. Mangas longas, saia social e meia-calça. Cílios de esfinge — um delineado que transbordava de seus olhos, misturando-se às olheiras.

Do mesmo jeito de antes.

Carolina assentou-se sobre o banco do meio, despendeu um suspiro e depositou sua bolsa sobre o balcão, exatamente como fizera da última vez. Ela olhou para o meu gorro vermelho e riu com gosto, como se eu estivesse usando um nariz de palhaço.

— Quem diria que aqui ainda vive o espírito natalino? — brincou ela.

— Créditos à minha irmã — respondi. — Foi ela quem me deu.

Ela inclinava o seu rosto, averiguando todos os cantos e os recantos de meu semblante.

— É fofo — disse ela. — Quantos anos ela tem?

— Ela faz oito em fevereiro.

— Bem nova.

— É, mas a Laura não me dá tanto trabalho assim. Um anjo.

— É você quem cuida dela? E os seus pais?

— Prefiro não comentar a respeito deles — respondi. — A não ser que você queria matar a conversa por aqui mesmo.

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