XI. Águas de Março

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Uma casquinha de sorvete nas redondezas do parque, segurando uma mão não tão menor que a minha.

As folhagens das árvores farfalhavam com a brisa estival, soando como os marulhos espumantes das ondas. Sentávamos num banco de tábuas envernizadas, resguardados do sol matinal pela sombra das aroeiras. Onde fingíamos sossegar sob as palmeiras, enquanto deixávamos a imaginação transformar os carros em navios de rodas.

O asfalto, o mar.

O céu, as nuvens.

É isso que chamam de mergulhar de cabeça?

— E a sua irmã? — Carolina rompeu o silêncio. — Ela não se importa que eu fique te roubando dela?

— Na verdade, sim — repliquei. — Mas as aulas dela voltaram, então aproveitei esse tempo para sair com você.

— E ela fica sozinha pelo resto do dia? Enquanto você trabalha?

— Infelizmente, sim.

Eu tinha esquecido qual era o sabor da baunilha.

— Mas não pense que isso não me incomoda — continuei. — Minha tia mora longe demais e não tem condições para cuidar dela todos os dias.

— E creio que não dê para pagar uma babá, né?

— Com o que eu ganho?

Balancei a cabeça, rindo sem graça. O sorvete derretia e escorria rente pela minha mão enquanto conversávamos.

— Olha, sujou — ela disse.

E tirou um lenço umedecido de sua bolsa.

— Limpa aí.

— Obrigado.

Carolina, enquanto mordiscava os últimos pedaços da casquinha, levantou o dedo e apertou os olhos.

— Hum... — murmurou ela.

— O que foi?

Ela limpou a boca com outro lenço e respondeu:

— Se não for nenhum problema para você, eu poderia cuidar dela nas minhas horas vagas.

— De minha irmã? — Ergui uma sobrancelha e um sorriso. — Cuidar de criança não é tão fácil quanto você pensa.

— Foi só uma sugestão, já que grande parte do meu trabalho eu posso fazer em casa — replicou. — São poucos os dias da semana em que eu tenho que me vestir e sair para fazer o inventário do almoxarifado, combinar as coisas com as distribuidoras e tal.

— Bom, supondo que seja só para fazer companhia à minha irmã, não vejo muito problema. É sempre bom ter um adulto vigiando nos momentos em que eu não posso. E claro, somente se isso não for nenhum problema para você, porque Laura é, sobretudo, a minha responsabilidade.

Carolina atirou os papéis sujos e adoçados numa lixeira de concreto, esticou os braços e bocejou.

— Eu não me importo muito — murmurou ela. — Além de que isso ajudaria com o conflito dos nossos horários.

— Como assim?

— Faz um tempo desde que passamos uma noite juntos.

Ela espiava-me com um sorriso, olhando-me de relance.

— Bom, mas não pense que isso é só uma desculpa que estou arranjando para passarmos mais tempo sozinhos — justificou-se. — Eu realmente quero que isso tudo dê certo entre nós, de verdade.

— Certo, mas para sermos justos, vou te ajudar com sua parte no trabalho sempre que precisar, tudo bem? Uma mão lava a outra.

Sem acanho, trocamos um olhar cúmplice.

O AnacronistaOnde histórias criam vida. Descubra agora