V. Antagonista

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Os melhores presentes são embalados em papel de seda e envolvidos numa caixa grossa e retangular de papelão. Eles têm aquele toque aveludado especial que hipnotiza as crianças como algodão-doce. Um sorriso de orelha a orelha se estampava como uma fita em seus lábios, enquanto ela rasgava o que eu com tanto zelo demorei para empacotar.

Como não tenho árvore de natal, vai o presente debaixo da cama mesmo.

Laura descascava, então, o casulo de uma boneca. Ela tinha asas iridescentes de borboleta e cabelos louros, assim como no desenho em que ela vivia assistindo. Era uma menina de algum mundo mágico e colorido, distante da realidade.

Havia também, à venda, uma boneca da antagonista. O problema é que não vendia muito para as crianças. Laura, assim como o resto do público-alvo, odiava a vilã que, na minha opinião, nem era tão má assim.

O mundo não é preto e branco.

Muito menos cor-de-rosa.

A verdade é que a antagonista era apenas uma mulher sábia e repleta de conflitos intricados. Acreditava em fazer do mundo um lugar melhor. Se você não prestasse a devida atenção, não perceberia que ela representava um simbolismo latente para a inevitabilidade da mudança.

Sem a vilania dela, a existência das heroínas mágicas perderia todo o sentido, visto que elas haviam dedicado todo esse tempo para salvar o mundo e nunca pensaram em suas próprias vidas. É lindo e altruísta, não é? Mas sacrifício não é sacrifício sem perda.

Se a vilã fosse derrotada, o mundo estaria salvo, mas ninguém saberia dos heroicos feitos das meninas. E, ainda por cima, elas ficariam para trás. Como passarão numa faculdade depois de lutar tanto tempo contra o mal? Ao invés de terem estudado, igual às outras crianças?

O estrago já foi feito.

E elas ficavam para trás.

Os pais jamais iriam entender.

Como heroínas trágicas e absurdas.

Não é a kryptonita, é a nossa humanidade.

Deslizando pelo escorregador e caindo na real.

Nós assistíamos juntos ao desenho toda quinta à noite, porque era dia de folga e o horário cabia como uma luva na agenda. Não havia por que negar esse mimo de estar comigo à minha própria irmã — eu só me recusava mesmo era a admitir que estava gostando daquelas personagens.

— Gostou? — perguntei.

Sim, eu sei ler as expressões faciais dela; mas, além de ver, também queria ouvi-la agradecer pelo presente. Era minha gratificação. Era o meu ar, meu oxigênio e o meu vício. Sem isso, não conseguia acordar.

— É claro! É a minha favorita! — respondeu ela.

Um júbilo condizente ressoava pelo timbre de sua voz.

— Eu te amo!

Laura soltou seu corpo sobre mim e me enlaçou os seus bracinhos sobre os ombros. Entretanto, ela precisaria apertar bem mais se quisesse que eu sentisse alguma coisa. Sua pressão; o seu calor. Porque aquele que tem mais do que precisa ter quase sempre se convence que nunca tem o bastante.

E pensa demais por não ter nada a dizer.

É por isso que a gente sempre quer mais — a vida é uma constante de estímulos. Uma criança ao se cansar de um boneco caro de policloreto de vinila se encanta até mesmo por um carrinho de garrafa de polímero termoplástico.

É sobre o estímulo. A novidade. E, infelizmente, não havia nada de novo na minha rotina desde meio decênio atrás. Laura cansar-se-ia daquela boneca em alguns meses. Com sorte, em anos.

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