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O encontro com a professora São e os meus antigos colegas da escola – essa designação de antigos causava-me estranheza porque secretamente ainda esperava que, no final de setembro, nos reencontrássemos todos outra vez, mas na universidade, numa reviravolta impossível do destino – foi muito agradável. Deixou-me feliz como há muito tempo não me sentia. Desde a concentração da seleção da Argentina no complexo de Trigoria, para ser mais exata.

Muitas vezes dava por mim apenas a observar o que acontecia à minha volta, a marcar cada pormenor, cada palavra, cada gesto para recordá-lo para todo o sempre. Sem querer, traçava um paralelismo inocente entre o meu grupo de amigos e o grupo de futebolistas argentinos. Naquele círculo de pessoas existia o mesmo tipo de cumplicidade, de amor e de diversão. Talvez entre os jogadores existisse num grau mais acentuado.

Juntámo-nos primeiro num bar que pertencia a um tio da Telma. Conversámos bastante e toda a gente falou sobre o seu respetivo estágio. Quando chegou a minha vez contei maravilhas da empresa de importação de bebidas alcoólicas que fornecia os estabelecimentos noturnos da zona, elogiei muito os meus colegas e a minha supervisora, ocultei que passava longas horas de tédio a rabiscar numa folha de papel quando não me davam nada para fazer. Também não mencionei o Humberto. A Marta observava-me atentamente para ver se eu contava o episódio que se passara entre nós, que lhe revelara no caminho que fizemos a atravessar devagar a rua das lojas para que pudesse detalhar ao máximo os acontecimentos. Entrevia o seu interesse mórbido, a vontade de me ver a escorregar na armadilha e estilhaçar a imagem de rapariga exemplar que todos tinham de mim. Mantive-me firme, contudo. Não iria cair na esparrela de me vitimizar e de procurar por piedade numa arena onde estávamos a competir pela medalha de termos o melhor trabalho temporário daquele verão.

A Marta adorou conhecer a minha pequena história lamentável com o Humberto. Ela achava que eu tinha, pelo menos, cedido a um beijo mais escandaloso, a umas mãos marotas, antes da providencial bofetada que terminara com as fantasias dele, mas que não lhe confessara o deslize por pudor e para me preservar. Por outras palavras, ela não acreditava naquela minha indignação no tempo certo que me escudara das explorações do Humberto. Se ela soubesse da minha ligação com Diego e de tudo o que fizemos um com o outro, em madrugadas frias e proibidas, faria um banquete. Bastava saber dos nossos beijos, dos nossos olhares, das nossas insinuações e já se daria por satisfeita, devidamente encartada para me destruir a reputação e colocar-se acima de mim. Com a Marta havia sempre uma espécie de competição surda que acabaria com a derrota de quem vacilasse. Com a Monique nunca me sentira assim. E, no entanto, naqueles últimos tempos, aproximara-me da Marta e afastara-me da Monique...

Depois do bar fomos para uma discoteca, duas ruas mais acima. Dancei muito, diverti-me mais ainda. Na parte dos slows recusei todos os convites. A Marta estranhou o meu retraimento. Desculpei-me que me doíam os pés, que me deixaram de doer assim que a música voltou aos temas populares de sucesso naquele verão. Foi totalmente surpreendente tocarem a canção oficial do mundial de Itália, "Un'estate italiana", e congelei na pista. Os primeiros acordes eram igual a dedos a percorrer-me o corpo que se arrepiava. Sorri e pulei, como se estivesse a festejar um golo. A seguir, os meus olhos marejaram-se e pedi, com urgência, uma bebida forte para recuperar o ânimo. Estava a ter uma quebra de tensão, inventei. Emborquei um shot de vodca sem gelo. O meu peito aqueceu, espevitei-me, mas a nostalgia continuou a fazer-me tremer e voltei a murchar. Os meus ombros foram sacudidos por um espasmo. Tapei a boca com as duas mãos.

Como eu sentia saudades de Itália! Tinham sido tempos maravilhosos. O brilho da relva, o calor de um estádio, as cores das bancadas. Tambor, corneta, fanfarra, berro, assobio. A sala de convívio com a televisão ligada, um jogo de cartas, um jornal desportivo, uma revista aberta. A mesa no restaurante com pratos cheios, com pratos vazios. O aroma do café, do chá, das torradas. A doçura cremosa dos gelados. O campo de treinos e as bolas a girar. O magote de jornalistas, microfones, empurrões, perguntas, câmaras de filmar, máquinas de fotografar. Gargalhadas, abraços, piadas, olhares intensos, mãos dadas. As viagens de autocarro, de avião, de comboio, de táxi. A pulseira que eu atei no pulso. A minha boneca de trapos. Os nós no cachecol. Rituais, sorte e azar. Um duche. Livros, estudar, um caderno a contar um diário, outro caderno cheio de números. Um beijo partilhado no escuro. A lua cheia. Música de orquestra. As ruínas romanas. Sorrisos. Lágrimas. Vida.

O Palco que Fica AbandonadoOnde histórias criam vida. Descubra agora