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Agarrei no telefone e liguei para Beveren. Não me importava que a minha mãe estivesse em casa. Cantarolava na cozinha a fazer uma qualquer tarefa doméstica e iria deixar-me em paz. Sei que haveria de tentar perceber com quem falava, para ir contar ao meu pai, mas como fá-lo-ia em francês, ficava sem conhecer o teor da conversa. O mais provável era julgar que falava com a minha correspondente belga. Continuava a receber cartas dos meus amigos estrangeiros, da Hélène e da Milena, mas a frequência tornara-se mais espaçada. Os nossos afazeres obrigavam-nos a gerir melhor o tempo e algumas coisas eram descartadas a favor de outras mais prementes.

Dormira mal na noite anterior, às voltas na cama, a pensar no jogo em que voltara a ver Jean-Marie numa baliza. Chorava e depois sorria, a tentar encontrar alegria no facto de que a minha televisão, que era sempre tão seletiva em relação às notícias desportivas, mostrara o meu querido guarda-redes belga que presentemente jogava na distante Turquia. Tinha sido muito bom revê-lo, a proteger uma baliza dos golos da equipa adversária. Relembrara o dia em que o conheci, no jogo contra a União Soviética, antes da minha queda e de ter aleijado o tornozelo, antes da minha aventura que me levou numa viagem exclusiva através de um mundial de futebol até à final inesquecível naquele dia quente de junho. Mas apesar de forçar sorrisos enfiando os dedos nos cantos da boca, repuxando-a para cima até me doer a cara, a tristeza avassalava-me. Desistia de aliviar a pressão que me estiolava o coração e caía num sentimento sombrio que me amarrotava. Entendia o meu desconhecimento sobre aquele jogo de futebol especial como uma rejeição. Jean-Marie, pura e simplesmente, rejeitara-me. Não se lembrara de mim ou, se o fizera, decidira que eu não pertencia junto dele, junto de outros futebolistas, num estádio para vê-lo jogar futebol. Esse mundo que nos unia tinha terminado dois anos antes.

Na segunda-feira de manhã levantei-me cedo, resolvi faltar às primeiras aulas para esclarecer a situação diretamente com ele. Estava mais calma, diria que estava estoica, a vestir uma serenidade blindada.

Atendeu-me a Carmen. Admirou-se muito por lhe estar a ligar. Falámos durante cinco minutos a trocar novidades. A minha universidade, o seu trabalho numa loja que passara a ser a tempo inteiro, pois tornara-se sócia da amiga que era a dona do estabelecimento e já pensavam em expandir o negócio para outras cidades, a escola das meninas que estavam muito grandes, eu provavelmente já não as iria reconhecer. A Debby tinha quinze, a Kelly fizera treze no verão e a Lindsey completara os doze anos em outubro.

A seguir pedi-lhe para falar com o marido.

Carmen vacilou um pouco. Iria mentir-me e inventar que o marido não estava em casa, ilustrando as suas palavras com a típica gargalhada ligeira que dava a entender com elegância a estupidez da pergunta. Depois disse-me para aguardar. Escutei o pequeno baque que o auscultador fez ao tê-lo pousado na mesa. Apertei os lábios e respirei fundo, de olhos fechados.

Ele apareceu escassos segundos depois. Imaginei-o a receber as instruções dela para não se alongar. Antes que ele falasse, cumprimentei-o:

– Olá, Jean-Marie! Bom dia. Há muito tempo que não falamos pelo telefone.

"Bounjour, ma petite! É verdade. Que bom escutar a tua voz."

– Igualmente. Estás em casa, então...

Retraiu-se.

"Pois estou."

– Estás de férias?

"Resolvi tirar uns dias de folga, sim. E tu? Não devias estar nas aulas?"

– Ah, já estou na universidade. Os horários são mais flexíveis. Deve ser mais ou menos o que acontece nos clubes turcos. O campeonato não é tão exigente quanto o da Alemanha.

O Palco que Fica AbandonadoOnde histórias criam vida. Descubra agora