Resolvi fazer uma mudança radical no meu quarto por alturas da Páscoa. Aproveitei a semana em que ficaria em casa para tratar desse projeto e porque também estava sozinha. O Marco tinha ido passar as férias com a família, a Lisboa, e eu precisava de me ocupar para não sentir tanto a falta dele. Detestava ver-me a definhar de saudades, no sentido mais romântico do termo. Significava que tinha perdido o controlo, que tinha sido derrotada e ainda não me encontrava preparada para assumir plenamente os meus sentimentos pelo Marco. Gostava muito dele, mas converter isso em amor... deixava-me relutante.
Contei à minha mãe que iria mudar o meu quarto. Ela achou bem, naquela sua atitude típica de quem ouve, mas não escuta. Eu costumava fazer essas arrumações periódicas e ela não interferia. Até as dava por bem-vindas porque assim significava que eu atirava coisas fora que ela considerava dispensáveis. Quando acrescentei que queria dar uma nova cor às paredes espevitou-se e negou-me a ideia de forma categórica. Eu que desistisse dessa parvoíce imediatamente. Ela não iria autorizar que me pusesse com pinturas. Primeiro porque o pivete a tinta fresca iria levar tempo a passar e não queria que eu dormisse na sala, nem havia outro compartimento da casa onde pudesse armar uma cama provisória. Segundo, a tinta custava um balúrdio. Por último, eu não sabia usar pincel, rolo ou trincha, não havia ninguém disponível para ajudar-me, acabaria por fazer um trabalho amador que teria de ser corrigido por um pintor profissional e o meu pai não iria ter essa despesa. Comprimi os lábios e aceitei a proibição, frustrada por ter de reformular o meu projeto.
Tentei não me importar. O que tinha para fazer já me manteria suficientemente ocupada.
Comecei pelos roupeiros e pelas gavetas. Esvaziei-os completamente, fiz uma triagem radical e enchi sacos com roupa para dar, perante o pânico da minha mãe que me dizia que eu ia ficar sem nada para vestir. Ótimo! Precisava de comprar roupa nova. Tinha novamente emagrecido, crescera os poucos centímetros que me faltavam crescer e pensava experimentar um novo estilo, mais sóbrio, mais clássico, menos juvenil, menos... reles. O Marco vestia-se bem e eu queria estar à sua altura. Se éramos um casal bonito, como dizia a Kathryn, também tínhamos de impressionar com o nosso aspeto e as nossas vestimentas.
Naquela triagem de trapos encontrei o vestido de Puebla, guardado com bolas de naftalina num saco de plástico fechado. Olhei-o com um sorriso. O vestido de Puebla sobrevivera, mas a Tina que o usara, não. Eu tinha-a estrangulado, lembrei-me. Voltei a fechar o saco. Enfiei-o no fundo da gaveta das blusas de verão. Era a única peça de roupa mais antiga que considerei guardar.
Levantei os olhos para os posters.
– Chegou a vossa vez – murmurei.
Retirei-os com cuidado para não os rasgar. Os cantinhos sofreram alguns danos, era normal por causa da fita-cola que tinha amarelecido. Cortei-a, pois quando tentei retirar uma das tiras acabei por desbastar o papel. Os posters de Diego tinham vindo dentro de revistas e ainda tinham os vincos. Voltei a dobrá-los e enfiei-os numa capa de cartão que se fechava com elásticos. O poster de Jean-Marie era uma folha de papel grosso que viera de uma loja de desporto que, entretanto, já tinha encerrado, provavelmente porque fora à falência. Enrolei-o, prendi-o com um elástico, e para não o deitar fora coloquei-o atrás da porta, junto à caixa da máquina de escrever e à bandeira do clube da minha cidade.
Restavam três caixas de sapatos repletas de tesouros, de segredos, de memórias, de sorrisos, de lágrimas e de jogos de futebol. Rasguei os recortes de jornal todos sem qualquer remorso ou hesitação. Reportagens maioritariamente em alemão, algumas em italiano e espanhol, poucas em português. Eram lixo que testemunhavam um passado que era incapaz de reconhecer naquela altura. Olhava para os sublinhados de certas frases, as imagens granuladas de Diego, os grandes planos de relvados e de estádios, as parangonas, as letras grandes e as letras pequenas, as legendas. E não percebia a sua importância, a razão que me levara a conservar aqueles pedaços de papel que se acumularam dentro da caixa. Os jogos tinham-se evaporado da minha mente. Os golos, os pontos do Napoli e do Bayern, a classificação no campeonato da altura. Por isso, deitei tudo fora, desfazendo os recortes sem pena, acumulando os pedaços desencontrados, quebra-cabeças impossível de refazer, num saco que depois iria fechar com dois nós. Mas quando cheguei ao fundo da caixa e vi a reportagem sobre Diego Maradona do jornal português Se7e... a data era julho de 1986... as minhas mãos travaram.
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O Palco que Fica Abandonado
Fiksi SejarahCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...