Se voltar a Nápoles me tinha emocionado, regressar ao estádio San Paolo fez-me chorar. Não contive a minha veia mais sensível e as lágrimas deslizaram silenciosamente pela cara. Enxuguei-as nas mangas em gestos rápidos. Felizmente, aqueles que estavam ao meu redor tinham a sua atenção totalmente focada no campo e não ligaram nenhuma a uma rapariga parva que desabafava as suas penas.
Devagar, contemplei as bancadas completamente lotadas de adeptos napolitanos. Havia somente uma pequena mancha preta e branca que se encolhia no setor que lhe estava destinado, bem delimitado para não haver dúvidas de que aquele era o público visitante, intocável e desprezado. Ninguém queria embirrar com eles e estragar a noite.
Fazia-se uma festa tremenda, com bandeiras, cachecóis, faixas e tochas. A receção da cidade ao clube e ao primeiro jogo oficial da temporada era estrondosa. O ar tremulava com os cânticos e os foguetes, sentia-se a eletricidade que perpassava a multidão e que a unia entre crepitar de faíscas num bater de coração em uníssono. Eu também fazia parte daquela enorme família e, se chorava, era também porque me sentia feliz, integrada, confortada.
O ambiente era mais amigável e unânime do que aquele que se vivera para o jogo das meias-finais do mundial que enfrentara, naquele mesmo recinto, a Argentina de Diego e a Itália de todos. Mais lágrimas, a recordar essa noite de enganos, acertos, arritmias, fascínios, deuses e mortais, sobretudo uma noite de silêncios iluminados pelos potentes holofotes montados na cobertura metálica. Hoje a iluminação não estava toda ligada, apesar de a supertaça italiana ser um troféu interessante. Aquela era apenas a sua terceira edição e jogava-se na casa do Napoli porque era o clube campeão. A Juventus, vencedora da taça, deveria visitar o campeão. Uma definição determinada pela federação de futebol que ninguém contestou abertamente, embora, para sermos justos, aquele jogo deveria realizar-se em terreno neutro. Teoricamente, o Napoli estava em vantagem, na sua cidade e com o seu público.
O San Paolo era estádio do Sul. Libertado que estava da maquilhagem e das vestes pesadas do mundial, que não condizia com o seu carácter humilde, mas orgulhoso, exibia-se selvagem e feérico, com todos os tiques e exageros que sempre vira a trajar as suas bancadas efervescentes. Acima de tudo, voltava a ser o santuário de Maradona. Reconciliava-se em definitivo com o seu ídolo e o público demonstrava todo o seu amor sufocante e exigente, aquela paixão tresloucada e cega que Claudia criticara, sem qualquer pejo ou reserva. Cantavam, urravam e ululavam, e eu deixei-me contagiar pela sua bestialidade benigna impregnada daquela identidade tribal que caracterizava qualquer claque de futebol. Também eu já cantava, urrava e ululava, batia palmas, clamava por Diego, entoava o nome do clube e exigia a vitória.
Hugo não estava comigo, nem eu me sentava na tal bancada exclusiva para convidados, perto da zona dedicada à imprensa que se juncava de jornalistas e de repórteres. O jogo iria ser televisionado e havia também muitas câmaras de filmar, indivíduos de microfone na mão a percorrer o relvado a fazerem entrevistas curtas aos protagonistas do encontro. Tinham-me dado um bilhete normal. Pediram-me que seguisse as indicações para chegar ao meu lugar e foi o que fiz. De resto, sempre tinha preferido assim – estar sozinha a ver o jogo, para me poder expandir e contrair sem testemunhas.
Os jogadores das duas equipas entraram em campo, vindos do túnel de acesso situado atrás de uma das balizas. O estádio levantou-se numa aclamação gigantesca. Quem tinha cachecol, e era a maioria, esticou-o por cima da cabeça. Fiz o mesmo. Balancei o corpo e fiquei a repetir Napoli, Napoli, Napoli. Uma barreira de fogo vermelha foi acesa na bancada dos ultras. A queima de pólvora foi tal que criou um denso banco de nevoeiro que envolveu, como um véu, o estádio. Senti a magia de ter entrado numa outra dimensão. Para além da neblina havia o mundo real. Ali dentro estávamos num reino encantado. Olhando para o centro do relvado, onde se juntavam os árbitros e os capitães de cada equipa, vendo Diego no equipamento napolitano de camisola azul e calções brancos, eu acreditava nesse feitiço. E desejei que aquela nuvem artificial com um cheiro acre nunca se dissipasse e ficasse para sempre ali, com Diego, com a cidade de Nápoles, com futebol. Fechei os olhos e com um último soluço sequei as minhas lágrimas.
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O Palco que Fica Abandonado
Historical FictionCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...