O final do segundo semestre do primeiro ano de um curso superior foi muito pesado. Fez-me duvidar, no meio de tantas diretas, estudo acumulado, má alimentação e um cansaço tremendo, das minhas capacidades, da minha inteligência e da minha resiliência, se eu não devia desistir porque não servia para aquilo.
Mas insisti e persisti, e quando começou o mês de julho estava exausta, mas contente com o meu desempenho. Fora sofrível nalgumas matérias, como Métodos Quantitativos e Contabilidade, escapei do exame obrigatório por pouco, mas pelo menos conseguira cumprir aquele primeiro ano sem chumbar a nenhuma cadeira e com notas acima do doze. Os trabalhos de grupo obrigaram-me a um esforço suplementar, vi-me em situações muito delicadas em que tive de usar de diplomacia e de hipocrisia em doses desiguais, mas no fim sobrevivi, todos sobrevivemos e terminámos amigos. Fomos de férias, alguns mais satisfeitos do que outros, mas o importante é que consegui, passada a borrasca e os horários alterados, acalmar-me.
Numa das noitadas que fizemos na sala de computadores do Politécnico, enquanto conferia operações contabilísticas com os balancetes resultantes, trauteava o novo sucesso que passava incessantemente no rádio. Era do grupo norte-americano R.E.M. que tinha lançado um novo álbum excelente, aclamado pela crítica e bem recebido pelo público. A canção chamava-se "Losing My Religion".
– That's me in the corner... that's me in the spotlight... losing my religion... trying to keep up with you... and I don't know if I can do it... Oh no I've said too much... I haven't said enough.
Passei uma folha e continuei a cantar num murmúrio:
– But that was just a dream... just a dream.
Dei-me conta das semelhanças com o caso mal resolvido entre mim e Diego, e calei-me abruptamente, cerrando os lábios com força. Sustive a respiração. Apertei a esferográfica nos dedos. As linhas de números desfocaram-se.
Nos últimos dias tinha-me refugiado na música. Primeiro a dos Beatles que ouvia diariamente, como uma dose de remédio prescrita pelo médico para que continuasse longe da consulta obrigatória do psiquiatra. A sua alegria contagiava-me e sentia-me imediatamente melhor depois de ouvir os quatro fabulosos de Liverpool. Depois, as novidades que marcavam a atualidade musical e que constituíam a banda sonora que definia aquele ano e que estaria presente nas tão ansiadas noites de um verão que estava prestes a começar.
Ali estava eu, naquele canto, debaixo daquele holofote, a perder a minha religião, o futebol. A tentar acompanhar Diego, fizera-o desesperadamente, a persegui-lo sem o conseguir alcançar, a tocá-lo ou a julgar que o tocava e o alcançava, que o conseguia reter na minha mão, no meu corpo, na minha alma. Ele evadia-se sempre, livre, demasiado livre e solto e rebelde como um papagaio de papel cósmico, igual ao que lhe chamara o tal jornalista a fazer o relato do seu monumental golo contra os ingleses. E não, não sabia se o podia acompanhar, lamentava essa dúvida que não era bem uma dúvida, porque sempre soube que jamais o conseguiria acompanhar. E já tinha falado demais e nunca tinha admitido nada por não ter falado o suficiente.
Aclarei a garganta e desimpedi-a do nó que se tinha formado. Pestanejei e também desanuviei a vista. Retomei a conferência dos balancetes, a mastigar em seco, a boca a saber-me mal, a derrota, a desilusão, a desamparo. Fora apenas um sonho e já tinha morrido.
Naquele ano não me apeteceu recordar as datas dos mundiais, apesar de as ter apontado na agenda onde marcava as datas dos testes e dos trabalhos, para me ir orientando no meio dos afazeres e das exigências que demandavam a minha atenção e o meu tempo. Acrescentara aos dias especiais do México os de Itália, e os dois mundiais constituíam uma coleção impressionante de efemérides ligadas, essencialmente, a jogos de futebol que aconteceram nessas competições, uns mais felizes e épicos do que outros. Começava no final de maio e ia até final de junho, inícios de julho. Alegria e tristeza, sorrisos e lágrimas. Havia de tudo.
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O Palco que Fica Abandonado
Historical FictionCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...