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Nos dias seguintes à minha viagem a Moscovo andei com várias interrogações às voltas na cabeça para as quais murmurava em repetição: porquê?

Porque é que o Napoli tinha tanto azar nas competições europeias?

Porque é que o comportamento de Diego variava entre um anjo e um demónio?

Porque é que Nápoles se tinha tornado, de repente, um lugar horrível?

Porque é que eu continuava a aceitar esta vida dupla sem me revoltar?

Porque é que tudo tinha agora um sabor agridoce que me deixava assustada?

Não tinha resposta, embora me tivesse esforçado por arranjar justificações que me acalmassem, que fossem verdadeiras e definitivas. A reflexão deixava-me exausta, com dor de cabeça e muito deprimida. Obriguei-me a desistir de encontrar uma solução para essas perguntas que me matraqueavam incessantemente o cérebro. Acabava por não conseguir resolvê-las sozinha e, como sempre, naquela matéria estava completamente entregue a mim mesma, a tomar opções sem qualquer rede de segurança ou o apoio de alguém isento.

Regressei à universidade na sexta-feira, dia nove de novembro, para uma manhã aborrecida repleta de apresentações de trabalhos de grupo da disciplina de gestão. Disfarcei mal o sono, os bocejos, o tédio. À saída, a Kathryn puxou-me pelo braço e reteve-me.

– Eu sei que escondes um grande segredo, mas se não me queres dizer, não dizes e eu não vou ficar zangada por causa disso. Mas se quiseres desabafar, podes contar comigo.

Por momentos considerei contar-lhe tudo, desde o princípio, desde o mundial do México até àquela visita imprevista à União Soviética numa viagem relâmpago. No verão tinha desabafado dentro de água e libertei-me das toxinas que me inquinavam o sangue e a mente dessa maneira. Soubera-me bem, saíra purificada e ufana das ondas, quase como Afrodite a nascer no mar da ilha de Chipre. Meses depois, precisava de outra catarse, de outra limpeza, de uma reconfiguração, como se fazia aos computadores que encravavam quando não reconheciam os ficheiros do sistema operativo. Desligar e ligar de novo. Mas desisti a tempo. Ainda não estava preparada para a confissão. Simplesmente, agradeci.

– Obrigada, Kathryn.

Por sorte não fiquei doente com todo aquele frio que apanhei. Fui salva pelo casaco e pelo gorro, fui salva pelos ambientes aquecidos em que entrava vinda da rua gelada, do estádio mais gelado ainda. A minha mãe descobriu as luvas que Claudia me tinha oferecido – o mais correto seria dizer que fora Diego a oferecer-mas – e adorou-as. Não me perguntou onde as arranjara, percebi a sua curiosidade, mas fingi-me distraída. Sei que a minha mãe ficou pensativa e, para que não criasse um incidente diplomático à conta das luvas – imaginei-a a conferenciar em segredo com o meu pai, a gizarem uma qualquer armadilha para me apanharem em falso –, embrulhei-as e dei-lhas pelo Natal. Nunca as usou. Onde morávamos não fazia frio suficiente que justificasse umas luvas daquelas, com duplo forro e punho de pele. Pelo menos, acalmei-a ou fui eu que deixei de ter a paranoia de ser surpreendida por um qualquer ultimato do meu pai à conta das luvas.

Para evitar pensar tanto em Diego, em Nápoles, no que desconhecia ou não controlava, dediquei-me com afinco à universidade. Para além das aulas, do estudo, dos trabalhos de pesquisa que nos exigiam como complemento à aprendizagem, passei a sair à noite com os meus novos amigos, a participar nos jantares do curso, a aproveitar a boleia da Kathryn que adorava esses convívios mais do que eu. Ela tinha uma ideia diferente da minha sobre o que significava estudar no ensino superior. Para ela, não era só tirar um curso e obter um diploma, a experiência era mais abrangente do que isso. Naquele percurso de três anos estávamos a ser introduzidas a um mundo de adultos que nos separava definitivamente da adolescência e da infância. Considerei as suas explicações, que ela dava muito séria e compenetrada, enquanto conduzia o carro até à baixa onde nos íamos encontrar com colegas para uma visita a um bar, beber um copo e conversar. Na universidade estávamos a crescer, resumindo por palavras mais simples. Mas eu já crescia, já me distanciava dos modos de criança e de rapariga, sempre que revivia o meu sonho do mundial mexicano nas minhas visitas primeiro a Munique e à Bélgica, depois a Nápoles. Estive outra vez tentada a contar-lhe sobre Maradona, mas ela estacionou o carro e a oportunidade perdeu-se.

O Palco que Fica AbandonadoOnde histórias criam vida. Descubra agora