Uma camareira deixou-me no quarto uma pequena sacola com roupa interior, um pijama, umas calças, uma blusa quente e agasalhos, que incluíam um casaco e um gorro de pele tipicamente russos. Apalpei-os e arrepiei-me, imaginando que aquilo seria efetivamente o escalpe de algum bicho peludo, como um urso. Tratava-se de um empréstimo, depreendi. Não podia levar o conteúdo da sacola comigo quando me fosse embora. Nem queria, neguei enfaticamente, a olhar para o casaco que denunciava onde o conseguira.
Tomei banho. Enchi a banheira até cima e aproveitei o conforto perfumado da água quente quando, lá fora, havia neve e um frio medonho. Nem sei como sobrevivi quando passei pela rua, naqueles momentos curtos em que saí do avião para o carro que estava à nossa espera, e do carro para o átrio do hotel. Não dei parte de fraca, mas se reparassem nas minhas unhas estavam lilases e tinha a ponta das orelhas num vermelho pouco natural.
Comi o jantar que a mesma camareira me tinha entregado no quarto, a meu pedido, apresentado num carrinho metálico repleto de bandejas. Preferi manter-me discreta. Estava alojada no mesmo hotel da equipa do Napoli, chamado ironicamente hotel Berlim – lembrei-me logo do muro –, e apesar de passar das onze da noite, havia gente ligada ao clube, incluindo os jogadores, acordada e bastante ativa. Os convívios aconteciam na sala de conferências daquele piso e, numa outra sala mais pequena que fora arrumada de modo a servir de restaurante, que evitei para não chamar a atenção sobre a minha presença que era ao mesmo tempo estranha e consentida, servia-se uma ceia. Todos sabiam que eu estava ali, assim como toda a gente sabia que Diego chegara acompanhado da esposa. Claudia ficou no mesmo quarto que ele numa ala do piso reservada só para o argentino e os seus acompanhantes, que me incluía. Não estávamos em compartimentos contíguos porque o hotel era enorme, um edifício largo e alto com uma fachada austera que exibia um sem fim de janelas sem varandas, mas estávamos suficientemente próximos para que fosse determinado, sem qualquer margem para dúvidas, de que eu era uma amiga de Maradona. Dessa maneira, beneficiaria da sua proteção e da sua generosidade, sem melindrar o clube ou a organização da UEFA.
Um grupo de fãs russos aguardava por Diego do outro lado da rua do hotel e fizeram um barulho enorme quando o viram emergir do automóvel, mesmo àquela hora tardia. Ele acenou-lhes, aconteceu o delírio que teve de ser contido pelo cordão policial. Diego chegava muito atrasado, a comitiva do Napoli já se encontrava em Moscovo havia mais de cinco horas e havia constrangimento e embaraço com a sua entrada no hotel. O presidente Ferlaino estava à sua espera, rodeado de homens engravatados muito mal-encarados que me fizeram lembrar uma comitiva da máfia. Diego, contudo, não se encolheu, não baixou os olhos, nem se mostrou submisso ou culpado. Caminhava impante e sorridente. Estendeu a mão e cumprimentou o presidente, comentou espirituoso sobre o voo que tinha corrido muito bem. Não assisti aos desenvolvimentos daquela situação, a reunião de Diego com os dirigentes do clube prosseguiu numa sala para onde foram levados pelo gerente do hotel, que fez questão de receber pessoalmente Maradona e de lhe pedir um autógrafo. Também lá estavam fotógrafos e jornalistas que registavam o momento que eu, sabiamente, evitei.
Assim que entrei no quarto que me foi atribuído fiz dois telefonemas. O primeiro para a receção a pedir roupa e o meu jantar. O segundo para casa. Em Portugal passava das oito da noite. Disse aos meus pais, quase gritando ao auscultador para eles não perceberem que estava a ligar-lhes de muito longe, que ia ficar na casa da Kathryn muito provavelmente durante dois dias. Estávamos a estudar e a terminar trabalhos. A minha mãe, que me atendeu, estranhou, mas fiz-lhe ver que a universidade funcionava assim. As exigências eram inesperadas e para respondermos tínhamos de fazer sacrifícios. Não me fez perguntas sobre se tinha condições para ficar a dormir com a minha amiga, pelo que depreendi que ela não estivera em casa durante algum período do dia e julgava que eu fora buscar uma pequena bagagem. Também não a esclareci.
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O Palco que Fica Abandonado
Historical FictionCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...