No início de 1991 dois acontecimentos fulcrais distraíram-me das notícias futebolísticas que vinham a ferver desde Itália. O primeiro foi o fim do semestre letivo em fevereiro – os cursos na universidade dividiam-se por semestres e não por períodos – que teve tantos testes exigentes e noites em claro, que jurava que iria enlouquecer.
O segundo foi a guerra do Golfo. Uma força aliada conjunta, liderada pelos Estados Unidos da América do presidente Bush, deu início a um ataque que se destinava a cumprir uma resolução das Nações Unidas e a libertar o Koweit, que fora invadido em agosto do ano passado pelo Iraque do ditador Saddam Hussein.
A tensão relativa à situação no Golfo Pérsico, que podia facilmente escalar numa terceira guerra mundial, ocupava-nos as preocupações e era debatida frequentemente em cada aula. Nós estávamos muito atentos à situação, porque, em caso de conflito generalizado, seria a nossa geração que teria de pegar em armas e lutar. O Miguel temia por si e pelos seus irmãos, o Pedro assustava-se com a possibilidade de um ataque químico, a Kathryn receava que o seu passaporte americano fosse um problema. Tudo perdeu importância perante as notícias diárias da guerra que passavam em direto nas nossas televisões e que ocupavam a totalidade do espaço noticioso, que mostravam ataques noturnos de mísseis, explosões medonhas, prisioneiros maltratados, civis tragicamente apanhados no fogo cruzado. O futebol passou a ser uma ocupação fútil e recordava-me, infeliz, de que o desporto fora suspenso durante as duas grandes guerras do início do século. Até o estudo parecia inútil. O nosso esforço para conseguir uma boa nota na frequência, passar à cadeira, cumprir o semestre perdia claramente por comparação ao sofrimento humano derivado da ganância dos homens ambiciosos e cruéis que só entendiam a lei da força. E também nos irritava que nos roubassem o futuro e a alegria daquela maneira indecente.
Refletia muitas vezes no que estava a acontecer. Só me sentia satisfeita e aliviada quando podia conversar com outras pessoas, quando trocávamos ideias que me permitia, findo o debate, olhar para tudo aquilo com uma abordagem menos dramática. Em conclusão, considerava que era perverso e frustrante que as nossas vidas fossem afetadas irreversivelmente pela guerra, quando o ano começara tão bem, com muita esperança, apesar de já existirem prenúncios de um novo conflito no Médio Oriente.
As festividades de dezembro tinham sido excelentes, com muitos momentos bons, em família e com os meus amigos. Comi muitos doces, descansei, diverti-me. Aliviei pesos e depurei toxinas.
No dia de Natal tinha visto, na televisão, o concerto dos três tenores, tal como fora transmitido nas televisões de todo o mundo. De alguma forma, a memória dessa noite distanciava-se do que via no ecrã, do que escutava nos discos de vinil. Quando as câmaras mostravam uma panorâmica do público sabia que eu era um daqueles pontinhos sentados para o lado esquerdo, ou talvez aquela nem fosse a fila do meu lugar, provavelmente estaria mais atrás, longe da abrangência daquele grande plano. Eu estivera ali e parecia-me irreal. A noite tão cheia de esperança parecia-me ainda mais irreal. As rapsódias e as árias maravilhosamente interpretadas pelas vozes dos três tenores também faziam parte da minha banda sonora particular, mas guardei-a para outros momentos, porque seis meses depois ainda me fazia lacrimejar entre sorrisos tristes.
Na festa que assinalou o fim de 1990 reencontrei os meus colegas da escola secundária e também a professora São. Distribuímos muitos abraços e contámos todas as novidades. Revi a Monique e a Marta, o Ricardo, a Telma, o Jorge e o Adriano. O Miguel e o seu irmão Sílvio também lá estavam. Conheci ainda pessoas novas. Deixei que um rapazinho se aproximasse e acabámos aos beijos, uma curtição agradável que me mitigou um pouco a solidão. Aconteceram alguns excessos com muito álcool à mistura, mas em qualquer festa que se prezasse existiam sempre casos que davam falatório para os dias seguintes.
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O Palco que Fica Abandonado
Ficción históricaCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...