No dia em que Diego completou trinta anos não pude telefonar-lhe. Foi numa terça-feira, tive o dia preenchido com aulas e estava toda a gente em casa quando cheguei, cansada e com uma terrível dor de cabeça. Por isso, esperei pelo feriado do primeiro de novembro, o dia de todos os santos. Os meus pais, tal como intuí, foram dar um passeio para aproveitar um inesperado dia de sol e de calor, levaram o meu irmão. Desculpei-me que tinha de estudar. Tinha mesmo. Já estavam marcados testes e trabalhos de grupo com apresentação oral no início de novembro, pelo que a minha mãe não insistiu para que fosse com eles.
Passavam apenas quinze dias desde o início das aulas, mas o ritmo imposto foi tão elevado, a pressão que nos colocaram em cima dos ombros foi tão grande, que era como se tivessem passado três meses. A universidade era bastante exigente, nada comparada com o secundário ou com qualquer outra experiência escolar que tivéssemos tido. Eu sentia-me atropelada, com os sonos todos trocados, um pouco atrapalhada na definição correta de um horário que me permitisse também ter tempo para as minhas coisas, especialmente o futebol, depois a família, a distração da televisão, escrever os meus textos e o meu diário. Admitia relutante que aquilo que o diretor do curso dissera era verdade – um curso superior ocupava-nos o tempo de tal maneira que deixávamos de ser indivíduos livres e passávamos a ser parte integrante do mecanismo maior que compunha a academia.
Felizmente, pelo meio desta adaptação aconteceu a semana de receção aos alunos novos. Participei nas diversas atividades que envolveram pinturas no rosto e mistelas coladas ao cabelo, desfiles pelas ruas, batismos com água fria de uma fonte da cidade, jantar de curso que juntou os alunos dos três anos e os professores, abuso de vinho e algumas bebedeiras, tribunais com cenas indecentes, leilões de sapatos, ordens arbitrárias e um sem fim de tarefas desconexas que tinha como objetivo integrar-nos nesse tal mecanismo. Algumas situações deixaram-me constrangida, mas como não estava sozinha, ultrapassei o potencial trauma. Apoiei-me muitas vezes na descontração da Kathryn que adorava tudo, até as cantigas pejadas de palavrões que nos obrigavam a repetir. Entrei no espírito do grupo e diverti-me. Esses momentos ajudaram-nos a conhecer os nossos colegas e, ao fim daquela semana intensa de atividades extracurriculares, os professores dispensavam-nos das aulas para irmos para as brincadeiras, já sabia os nomes de todos e até algumas datas de nascimento. Esse processo de integração teve também o discutível propósito de atribuir uma classificação evolutiva aos alunos do primeiro ano. De asnos passámos a caloiros, a seguir fomos cavalos-marinhos e, por fim, cães de fila que teimavam em continuar a estudar depois de termos sido apresentados ao horror do que significava pertencer a uma universidade que não olharia a meios para triturar os mais fracos e punir os desistentes. Era tudo um exagero medonho que me deixava intrigada, furiosa e motivada para provar que possuía estofo para finalizar o curso com as boas notas que sempre me caracterizaram enquanto aluna.
O meu medo, curiosamente, em face de toda esta apresentação que misturava divertimento e intimidação numa amálgama informe que me agradava e desagradava em simultâneo, desapareceu completamente ou fui eu que deixei de ter oportunidade cabível, ao longo do dia e mesmo quando, de noite, me deitava exausta na minha cama, para pensar nele. Deixei de ter medo, pura e simplesmente. Só isso era suficiente para considerar aquela semana como interessante e justificável.
Depois, os professores carregaram no acelerador e exigiram trabalhos, testes, a nossa atenção, o couro e o cabelo, sangue, suor e lágrimas. Eu andava a mil à hora e acho que a Kathryn, ao ser a minha nova companheira dos estudos, potenciava esse meu estado excitado e acelerado, porque ela andava constantemente excitada e acelerada. Talvez o seu medo se convertesse no combustível da sua inesgotável energia.
Por isso, na tarde do feriado do primeiro dia de novembro, resolvi fazer uma pausa e telefonar para Nápoles. Havia a razão de querer felicitar o meu amigo argentino por mais um aniversário, mas também havia a necessidade de manter contacto com ele, já que fazia praticamente um mês que não nos falávamos. Eu continuava a acompanhar o futebol todos os domingos no programa desportivo habitual e ficava até perto da meia-noite para poder ver os jogos da Serie A. O Napoli prosseguia na sua carreira irregular, que misturava vitórias magras com empates e derrotas. Diego tanto jogava como não jogava. As justificações mencionadas pelos jornalistas variavam e pareciam-me sempre esquisitas e falsas. Maradona estava indisponível devido a lesões, birras, castigos, gestão de plantel. O certo era que a sua prestação naquela época estava a ser tão instável quanto a carreira do clube, embora sempre que entrava em campo marcava golos e ajudava a equipa.
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O Palco que Fica Abandonado
Fiksi SejarahCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...