Forrei uma nova caixa de sapatos com papel de embrulho que tinha sobrado dos presentes de Natal. Ficava sempre uma gaveta cheia de pedaços desencontrados de tamanhos variados que não serviam para embrulhar nada que, em dia de arrumações, iam parar ao lixo. Eu costumava aproveitá-los para trabalhos manuais, para decorar cadernos, para inutilidades quando me sentia entediada.
Naquele dia, os recortes coloridos serviam para criar uma nova caixa que iria guardar as recordações do mundial de Itália. Não eram muitas, comprovei desolada a olhar para o interior da caixa, com a tampa na mão a hesitar se a devia fechar – se era mesmo só aquilo, se não devia juntar os dois mundiais num lugar só.
Não! O sonho de verão do México tem um espaço próprio, no meu coração, na minha vida, numa caixa. Não, nem pensar. Misturar o México com outra coisa qualquer, até com a alegria dos campeonatos italianos que Diego ganhou, ou mesmo a taça UEFA, seria um sacrilégio, e já chega de tantas manchas e sujidades que vou deixando no tecido do México.
Na nova caixa, impecavelmente forrada, um trabalho muito mais cuidadoso e bonito do que os anteriores, só estava um conjunto de postais de Roma, um cachecol do clube Napoli, bilhetes de jogos que sobreviveram perdidos nos meus bolsos e o meu caderno com o novo diário. A boneca de trapos mexicana regressara à caixa do México, onde a reuni ao boné com as cores belgas, aos cartões de livre trânsito que utilizara em Puebla e na Cidade do México, ao primeiro diário e mais nada. Lembrei-me com um suspiro que a camisola da Argentina oferecida por Diego ficara nas bancadas do estádio em Roma.
Se tivesse comprado uma mascote, o boneco articulado constituído por vários blocos verdes, brancos e vermelhos chamado Ciao, teria mais qualquer coisa para guarnecer a nova caixa, mas voltei a esquecer-me desse detalhe. Ainda bem. Se não tinha comprado o Pique mexicano, a malagueta verde, era coerente que também me tivesse esquecido de comprar o Ciao.
Coloquei a tampa. Feito. Mal feito.
Colei a caixa ao peito, fechei os olhos. Não havia mais nada físico para invocar, num dia de chuva e de saudade, o mundial de Itália. O meu relato teria de servir para repescar lembranças que eram só minhas, única e exclusivamente minhas. Noutro dia, anos depois, este talvez de sol, alguém que fosse recuperar aquele caderno poderia fazer o paciente exercício de comparar o que as suas folhas contavam com as imagens dos jogos do mundial e perceber se a história se afastava ou se aproximava da realidade. Esperava não estar presente nessa altura. Teria muita vergonha de admitir determinadas situações e certos sentimentos.
Arrumei a caixa junto das outras duas que continuava a esconder nos fundos do armário que me servia de roupeiro, atrás de roupas de inverno que já não usava, mas que mantinha como uma cortina que protegia esse santo dos santos particular. A primeira caixa era do México. A outra, atafulhada de recortes de jornais, ocasionalmente uma ou outra fotografia, cadernos embrulhados em dois cachecóis, um às listas brancas e vermelhas e outro azul, uma flor seca, uma tira de plumas esfiapada, contava os quatro maravilhosos anos de intervalo entre os dois mundiais. Ah, tantos jogos bonitos, tantas vitórias inesquecíveis, troféus e sorrisos e abraços!
Agora teria mais quatro anos até ao próximo mundial...
Não, não teria, emendei com azedume. Diego não estaria na seleção da Argentina para disputar o campeonato do mundo nos Estados Unidos da América e eu não sabia o que me restava mais para guardar. Abriria uma quarta caixa? Não valia a pena. Diego jogava no Napoli, clube italiano. Tinha contrato assinado até 1993. Tudo o que conseguisse vencer nesse entretanto eu juntaria à caixa do mundial de Itália. O mesmo país. Um prolongamento natural da crónica que tinha terminado tão mal com a derrota argentina e o título de vice-campeão, numa noite de desprezo, de ódio e de lágrimas. Talvez uma tentativa de maquilhar essas impressões amargas... Colocar em cima de lembranças ruins momentos mais felizes...
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O Palco que Fica Abandonado
Narrativa StoricaCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...