Agarrei-me ao verão com unhas e dentes, numa aflição desesperada, num ardor demente, numa ânsia esganada, preenchendo os meus dias com tudo o que me pudesse distrair. Se abrandasse o ritmo cairia na contemplação e acabaria tragada pelo monstro da solidão. Tinha tomado a decisão de apagar definitivamente o meu passado, aqueles últimos anos que fechavam a minha adolescência. Em dezembro faria vinte anos e tinha de encerrar essa fase turbulenta da vida com uma pirueta airosa e uma gargalhada na face do destino. Queria ter a certeza, quando soprasse as velas do meu bolo de aniversário, de olhos fechados e a pedir um desejo, que tinha conseguido sobreviver.
A pausa normal no futebol, que acontecia durante aquele período de férias, era providencial. Precisava, sobretudo, de extrair o futebol de mim, como se de um tumor maligno se tratasse. Essa massa que fora juntando, decorando com flores, brilhos e adjetivos, apodreceu, e agora, tumefacta, inquinava-me o corpo e o espírito. Excisá-la era fundamental, o passo mais importante da minha cura e da minha vitória sobre esse passado que me atormentaria se eu, de algum modo, deixasse o tédio me apanhar.
O meu curso universitário tinha estágios obrigatórios, no final do segundo e do terceiro ano. No primeiro ano quem apresentasse um plano de trabalhos numa empresa ou numa instituição podia inscrevê-lo como estágio e deixar de o fazer nos anos seguintes, pois tinha completado os créditos dessa parte do currículo do curso. Ainda continuava um pouco traumatizada com a minha experiência de estágio na empresa de bebidas, no verão do ano passado, e tomei a decisão de não trabalhar naquele verão. Considerei, com a pompa melancólica de uma aristocrata despojada, que era o meu último verão de férias grandes – outra maneira de me despedir dos tempos livres e inocentes dos meus verdes anos.
Falei com os meus pais e eles não colocaram nenhuma objeção. Expliquei que a partir do ano seguinte iria trabalhar sempre, que precisava de experimentar os meus últimos e longos três meses de férias. Tinha a perfeita noção de que a minha justificação não pesara no seu aval, para eles tanto se lhes dava que eu trabalhasse ou não, as despesas do meu primeiro ano de universidade não lhes pesaram nas contas, as do segundo ano estavam mais ou menos cobertas, e acabaram por concordar mais por descaso do que por anuência plena.
Tudo isso contribuía para me focar no objetivo de aproveitar aquele verão da melhor maneira possível. Nem sempre tinha um programa exaustivo de encontros, festas, saídas, praia, passeios e eventos, mas nesses dias em que ficava por opção em casa tentava aproveitá-los fazendo pequenas tarefas que me davam prazer. Ler, escrever, ouvir música, ver televisão, realizar pequenas arrumações no meu quarto, dar uma volta até à baixa, comer um gelado enquanto via as montras, telefonar aos amigos, perceber o que estavam a combinar para me intrometer, para me fazer de convidada.
Tentava não me isolar. Mesmo quando escolhia estar uma tarde sozinha com os meus assuntos, ou dormir um pouco mais de manhã, não me sentia isolada. Os meus pensamentos, que planeavam, construíam e desconstruíam a minha agenda mental, acompanhavam-me e eu fazia para que fossem muito cheios e ruidosos.
Aquele verão iria valer a pena. Seria o melhor de todos os verões, sentenciei, plenamente convicta do que dizia. Estava a contar uma mentira amarga a mim mesma, mas era necessária para me libertar de vez. Precisava de curar a ferida que continuava a sangrar na minha alma. Fechá-la, cobrir a cicatriz com uma fita colorida.
Houve apenas um instante que me transtornou, mas que acabei por conseguir gerir. Dias depois do telefonema de Diego recebi outro, também oriundo da Argentina. Era o advogado de Claudia. De alguma maneira, ela tinha descoberto que o marido me contactara e resolvera deixar-me um aviso, através do seu representante legal, para que eu não me pusesse com ideias de ir atrás de Diego, fazer uma qualquer loucura e aparecer em Buenos Aires à sua procura. Lera num jornal que eles estavam separados. Podiam divorciar-se, algo que eu achava improvável, embora percebesse que Claudia estaria muito magoada com o que Diego fizera de uma forma abrangente, não tinha que ver especificamente comigo. Ela precisava de distância para se recuperar, para organizar a cabeça e os seus sentimentos. Eu estava a fazer o mesmo. No meu caso, porém, a distância e o tempo significavam mesmo um afastamento definitivo e irrevogável.
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O Palco que Fica Abandonado
Ficção HistóricaCrescer! Um verbo que me acompanhava depois de cada mundial de futebol. Só que crescer, no verão de 1990 depois do torneio disputado em Itália, significava desistir de um certo passado e arriscar um novo futuro completamente diferente de tudo o que...