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Adorei regressar às aulas para o segundo ano da universidade. Abriram novos cursos e havia toda uma legião de caloiros que eu e os meus colegas de turma iríamos acolher e orientar. Deram-nos uma trabalheira medonha, pois tivemos de nos desdobrar entre as nossas obrigações académicas e as brincadeiras que lhes preparámos para fazer uma praxe que vingasse o que nos tinham feito um ano antes. No fim, compensou. Toda a gente foi integrada na grande família dos alunos da escola de gestão que, para aquele ano letivo, inaugurava um edifício novo. Deixávamos de estar confinados a um piso do edifício das engenharias. Sentimo-nos ricos e privilegiados.

No início do segundo ano vinha com outra bagagem. Eu estava mais avisada, mais segura. Olhava para os caloiros e havia aquela sensação de superioridade natural, porque nós já sabíamos como era o ensino superior e eles ainda iriam ficar a saber. Estávamos dispostos a ajudá-los, mas por outro lado também queríamos que descobrissem sozinhos, que sofressem o que tínhamos sofrido, para provarem do mesmo remédio amargo. Porque quando tinha sido connosco, os veteranos não nos tinham avisado, nem ajudado. Disseram-nos algumas coisas, mas foi sem qualquer assertividade ou real intenção de nos prepararem para as agruras do ensino superior. Houve a palestra do professor que nos meteu medo, numa das primeiras apresentações, mas não quisemos acreditar nele. Podia estar deliberadamente a enganar-nos para forçar uma dedicação desnecessária. Agora olhávamos para os caloiros, ríamo-nos todos juntos, éramos simpáticos e prestáveis. Por detrás, abanávamos a cabeça e o nosso sorriso era maligno, muito perverso, porque antecipávamos-lhes as mesmas dificuldades que experimentámos. Fazia parte do processo de crescimento e de adaptação ao ensino superior. Não devíamos interferir, concluíamos, sabedores e conscienciosos. As armas para enfrentar o mundo ganhavam-se muitas vezes à custa do erro e da desilusão.

O verão acabou, assim, por passar depressa. Quando dei por mim estava em meados de setembro a preparar-me para voltar à universidade. Naquele ano letivo havia uma novidade. O meu primo Pedro, filho mais velho da minha tia Irene, viria morar connosco para fazer o secundário juntamente com o meu irmão. Ele estava a revelar-se um adolescente muito problemático e a minha tia pedira o favor à minha mãe, preocupada e um pouco desesperada. Os meus pais debateram esse assunto entre eles, perguntaram-me a opinião, falaram com o meu irmão, e acabaram por tomar a decisão de acolher o meu primo. No entanto, não o fizeram com alegria e naturalidade. Antes de ele chegar, no final de setembro, houve alguma tensão em casa, como uma tempestade que engrossava no horizonte. Passei esses dias no meu quarto para evitar confrontos. Só aparecia para as refeições. Algumas vezes, fui eu que amanhei qualquer coisa para jantar, para não sobrecarregar a minha mãe que se mostrava irritadiça. Quando o Pedro chegou, o ambiente voltou ao normal. Ele foi muito bem acolhido, o meu irmão estava radiante por ter um companheiro de quarto para conversar e para jogar no computador. Eles davam-se muito bem desde crianças e tornaram-se mais unidos. A sua cumplicidade notava-se nos gestos, nos interesses, na forma como cada um amparava o outro.

Deixei os rapazes com os seus assuntos de rapazes e foquei-me em mim. Deram-me mais espaço e, no fim, achei que tinha sido uma excelente ideia ter o meu primo em casa, a entreter o meu irmão, a distrair os meus pais do que eu fazia.

O verão tinha efetivamente passado muito depressa. Quando me apercebi estava quase a recomeçar as aulas e impunham-se as despedidas que se tinham tornado obrigatórias desde que o grupo dos meus colegas do secundário inevitavelmente se separou. A professora São continuava a ser o motor que punha a máquina a funcionar e foi ela que nos voltou a juntar para um jantar, no início de outubro, antes de cada um seguir o seu caminho para mais uma temporada que haveria de terminar no início do verão seguinte. Ciclos. A vida era composta de ciclos.

Paradoxalmente, encontrei alguma tranquilidade naquela forma repetitiva e constante de se colocarem as coisas. Adorava a transgressão, o inesperado e a aventura, mas acabava por fixar-me numa base que me garantisse apoio e abrigo. Uma casa, um refúgio, um lugar. Um jantar com amigos com a promessa de um outro reencontro, mais ou menos na mesma altura do ano. Deste modo, abria-se espaço para outros recomeços, até achar necessário voltar ao ponto de partida, ao navio ancorado naquele porto.

O Palco que Fica AbandonadoOnde histórias criam vida. Descubra agora