Lembranças

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Não me lembro ao certo quando eu dormi, há muito tempo não dormia bem. Desde o meu acidente meu sono estava irregular, as vezes dormia 2 hs as vezes um dia inteiro, vários médicos diziam que isso era um processo de cura do meu cérebro, outros que eu estava em depressão e por isso a irregularidade. A verdade é que se sentir um copo pela metade quando era pra estar cheio é um saco.
Quando se tem algo e se perde é angustiante, mas só quem perdeu o mesmo que eu saberia precisar o quanto. Perder a memória é a pior sensação do mundo, pois não se perde apenas as lembranças, se fosse isso tudo bem, mas a gente perde a nossa identidade, a nossa identidade, pois não vivemos da mesma forma em que estávamos no mundo, nossos gostos, nossos traços sociais todos se perdem, é realmente angustiante.
Eu ainda posso me considerar um cara de sorte pois perdi parte da memória, têm indivíduos que perdem toda a memória esses com certeza são mais fodidos do que eu.Eles acordam se olham no espelho e não se reconhecem, não têm como não ficar desesperado.
Comigo foi similar, mas eu já estava em processo de mudança aos quatorze anos, eu ainda mantive traços dos quais ao me olhar eu sabia que era eu, apesar de ter mudanças significativas, eu já não era obeso, estava mais forte, enfaixado por causa da cirurgia, ainda era eu, mas até pra mim foi assustador. Quando vi algumas tatuagens logo pensei na minha lista de como irritar meus pais, pelo menos naquele momento eu estava seguindo o que eu queria. Eu fiz essa lista quando tinha oito anos, é muito louco pensar no passado. Eu só tinha essas lembranças e de tanto pensar e tentar lembrar de algo eu relembrei muitos momentos dolorosos, não tive como evitar, não mais, apesar de sempre fazê-lo, sempre fugi das memorias que me causavam dor e sofrimento.

Acordei apenas uma vez ao longo da noite, é engraçado porque acabei me adaptando a dormir pouco. Passei muito tempo atormentado com o fato de não me lembrar de nada, se eu soubesse que só por estar perto do Jae a minha memória iria começar a retornar eu não teria ido para longe.

A verdade é que só fui para a Inglaterra para ficar livre dela, não conseguiria conviver e digerir uma afetividade da qual não lembro de quando foi construída, eu sabia que se eu fosse para outro país ela não iria, ela nunca iria deixar a vida de lado para tratar de alguém, ela nunca iria se sacrificar pelo meu bem estar.

A minha mãe foi a pessoa que eu mais amei e a que mais me machucou, me lembro do tempo em que eu era pequeno, me lembro de rirmos, dela estar comigo, de ficarmos na piscina, de correr na praia, era uma época muito simples, tudo era acolhedor, seu olhar, seu abraço e o seu colo, corria ao encontro deles, a sra Kim era uma pessoa totalmente diferente do que se tornou.
Mas a medida em que o tempo passava as coisas foram mudando pouco a pouco, ela foi retornando ao seu trabalho, retornando para profissão na qual ela amava demais.
Aí vieram as pesquisas, simpósios, congressos, o doutorado, especializações, e com isso o seu interesse por mim foi acabando, a sua presença foi diminuindo dia a dia assim como a sua paciência, estar comigo era visualmente desconfortável, ela não conseguia evitar, até seu sorriso mudou, seu olhar por mim era de desinteresse, de frustração, ela passava a mensagem de que estava perdendo tempo apenas em seu olhar vago.
A verdade é que ela tentou, simples assim, ela tentou ser mãe, se dedicou em um curto espaço de tempo mas não conseguiu, ela foi se dando conta de que não era isso que ela queria, que a maternidade foi um erro, e algumas vezes ao longo dos anos em meio a discussões com o meu pai eu a ouvia falar sobre isso.

Eu me senti abandonado, órfão em vida, meu pai nunca foi muito próximo e isso eu entendia pois ela sempre dizia que meu pai era incrível, que as mãos dele eram mágicas e que a gente precisava dividir ele com o mundo,mas ela eu demorei a entender que ela também queria viver só para o mundo e não para mim, qual filho entenderia que de uma hora para outra seus pais iriam vir a se arrepender de ter você?

Tive tudo que uma criança poderia querer, não havia o que eu pedisse e não ganhasse, a afetividade deles era trocada por carrinhos, doces, brinquedos de montar, video games, enfim, viajei para onde quis, mas quase sempre sem eles e quando era com eles era o mesmo que estar só , nada mudava a não ser as cobranças, os esporros, os corretivos.
Eles sempre estavam ocupados para mim, nunca tentaram de verdade se doar nem que fosse um pouquinho.

Arriscando Tudo book 2Onde histórias criam vida. Descubra agora