Cômodos à beira mar 3

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- Desculpe, mas será que tem um lugar para mim na sua hospedagem?
Astoria estava mexendo nas plantas da parte da frente e se assustou com uma voz masculina e pesada atrás de si. O homem percebeu e desculpou-se. Astoria olhou-o e disse que estava tudo bem. O homem tinha uma expressão triste em seu rosto, ele tentava esconder com a barba grade e fedida e com as roupas maltrapilhas. Era um andarilho.
- Claro que tenho. Queira entrar.
Astoria limpou as mãos sujas se terra no vestido e abriu a porta para o homem entrar. Ele parecia timido e tentava não encostar nas coisas para não sujar. Pegando o livro, Astoria abriu e preencheu as linhas com a caligrafia perfeita.
- Nome.
- Ah, eu não tenho dinheiro para pagar um quarto. Pode me arrumar um lugar no celeiro.
- Não, não tem que se preocupar com nada. As despesas são por minha conta. Eu sou a dona eu decido o que fazer aqui. Agora me diga seu nome.
- Dave Graves.
- Ótimo - Astoria sorriu e se virou para as chaves. Faltavam duas. Olhando bem, pegou a chave de número quinze -, venha comigo Dave.
Eles subiram a escada em espiral até um corredor de cor amarelado. Abrindo a porta e empurrando o homem para dentro, Astoria disse à ele.
- Ali naquela porta tem um banheiro. Eu vou preparar um banho para você, vou te trazer algumas roupas e algo para comer. Enquanto isso sente-se no divã e espere.
Ele obedeceu. Ela era autoritária como sua esposa foi. Ele se sentou e ouviu a torneira se abrindo e enchendo algo. Logo ela saiu e voltou com uma muda de roupas e sapatos, além de tesouras e um pente.
Astoria esperou do lado de fora do banheiro. Ele demorou. Mas valeu a pena porque caprichou no serviço. A mulher o fez sentar em uma cadeira e com um pente Astoria puxava e picotava fios. O chão ficou preto de cabelo e barba encaracolada. Quando acabou, de banho tomado, roupas limpas e cabelo e barba feita Dave era um homem diferente. Mais jovem e levemente feliz.
- Descanse. Eu volto já.
Astoria sumiu pela porta. Dave sentou-se na cama e olhou para a janela aberta. Astoria fora muito gentil. Nem o conhecia e lhe dera um quarto, um banho e roupas cheirosas. Ela era muito parecida com Jenny. Nas atividades e na aparência. Quando Astoria voltou, Dave enxugou as lágrimas que haviam caído. Ela tinha trazido uma bandeja com torradas e ovos mexidos, fruta e uma xícara de chá.
- Eu tenho que descer, mas quando terminar deixe aqui que mais tarde eu volto e pego. Agora durma um pouco, o senhor parece cansado.
Estava moído. Assim que Astoria saiu ele comeu, puxou as cortinas e deitou. A cama macia parecia água. Tão mole e flutuante. Fazia muito tempo que Dave não dormia em uma. Desde que Jenny partira. Com os olhos fechados ele se lembrou.
Jenny era uma mulher linda. De olhos esverdeados e pele escura. Tinha os cabelos curtos e a boca arredondada. Era um doce de pessoa, sempre disposta a ajudar quem precisasse. Mas as pessoas não estavam dispostas a ajudar Jenny. Dave conheceu Jenny no cinema. Ele fora com um amigo e ela com uma amiga. Lá eles conversaram e depois de alguns meses namoraram e casaram. O casamento tinha sido tão perfeito, que Dave se sentia nas nuvens. Ele a amava mais do que a si mesmo. Jenny era o ar que ele respirava.
" Dave querido, eu te amo tanto que é impossível medir com palavras " dizia ela. E sua voz soava suave e doce.
" Dave amor, eu não estou me sentindo bem"
Dave abriu os olhos. Daquela forma não dava. Sempre que tentava dormir aquilo acontecia. Sempre. Era um trauma. Um trauma que para Dave era insuperável. Piscou algumas vezes tentando embaralhar as memórias, o que não surtiu efeitos e as lembranças passadas voltaram a mente, como as ondas da praia voltavam a areia. O som da água raspando na areia era o que o fazia viajar de volta a Jenny. De volta às viagens a Itália, ao Marrocos à Grécia. Momentos felizes que Dave sabia que não voltariam mais. Com lágrimas nos olhos, Dave decidiu que não queria mais reprimir os seus sentimentos e deixou as memórias voltarem.
As lágrimas molharam o travesseiro caramelo. E o quarto nesses tons de açúcar queimado se tornou pequeno para a imensidão de sentimentos e turbilhões de medos que ele sentia.
À vinte anos, Jenny tinha sido diagnósticada com uma doença que nem mesmo os médicos sabiam a cura. Dave viu o amor de sua vida perder a cor, os cabelos, e definhar na cama. Os olhos outrora verdes agora eram fundos e opacos. A chama da vida de Jenny já não ardia mais. Dave não saiu de seu lado em nenhum momento. E isso o consumiu também. Em uma noite de domingo, estava quente e o mar rolava suas ondas sobre a areia. Jenny olhou para Dave, lhe disse "eu te amo em formas imensuráveis, tais como o universo " com as últimas forças que tinha e deu seu último suspiro.
Dave não suportou e abandonou tudo. Vivendo da compaixão dos outros. Dependendo de cada coração bom. Dependendo de pessoas como Astoria.
Dave perdeu a noção do tempo. Adormeceu. Por alguma razão aquele quarto lhe tinha dado a força que precisava. E Jenny já não era uma memória triste e assassina. Mas uma memória suave, doce e acalentadora do seu amor infinito e interminável.

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