No outro dia eu estava me sentindo mal, meu corpo doía e parecia que uma jamanta tinha passado por cima de mim. Eu estava com olheiras enormes e meu cabelo estava todo bagunçado, sem cachos e todo espetado.
Cambaleante, andei até o chuveiro onde eu o abri e a água morna escorreu pelo meu corpo. Por um instante enquanto a água tocava a minha pele, eu esqueci de todos os meus problemas incluindo Bianca. Esqueci de tudo e eu queria que tivesse continuado assim, mas quando eu saí de casa alguns minutos depois eu me lembrei que a minha vida era a mesma merda de sempre.
Então eu caminhei até o Café, passando pelas mesmas pessoas e ouvindo o resmungar delas, tinham vidas tão infelizes quanto a minha. Fiz a mesma rotina, vesti o uniforme, aprendi a plaquinha com meu nome, abri o Café e esperei.Era terça-feira, mas para mim a semana já tinha acabado na segunda.
—Você me parece muito mais melancólica hoje do que nos outros dias — comentou Noel. Eu respondi que não era nada e continuei passando um pano úmido nas mesas. Às 8:30 o café ainda estava vazio, mas não por muito tempo porque Bianca chegou acompanhada com uma garota. Eu a conhecia. Era a Nanda, uma amiga da Bianca e amiga da minha inimiga, é minha inimiga.
Eu detestava elas e se eu pudesse eu faria coisas absurdas, mas eu era só uma garçonete, para elas eu era uma colega de classe que não tinha futuro nenhum na vida. Era assim que elas me viam.
Sentaram na mesa 22, na mesma do dia passado. Engolindo o ódio algumas vezes foi atendê-las. Alice como sempre atrasada. Elas se olhavam e riam, riam muito. Eu me aproximei e educadamente dei bom dia e perguntei o que queriam pedir.
Cínicamente, Bianca me olhou e respondeu:
— Oi Megan!
— Oi - respondi.
— Você se lembra da Nanda? Nanda, é a Megan. Lembra dela não é?
Nanda me encarou por uns segundos e balançou a cabeça negativamente.
— Como não se lembra, é a Megan, ex do Ângelo.
Nanda se lembrou, é claro que lembrou. Ela pegou meu namorado. Quando eu soube, naquela época, eu tive vontade de sumir com ela, sabe dar cabo. Mas no fim das contas eu entendi que o problema não era eu, era ele e que ele não gostava de mim realmente.
— Desculpe te corrigir, mas na verdade meu nome é Magarya — corrigi mais uma vez. "Desculpa nada" — E sim, eu namorava o Ângelo.
— Sim eu me lembro - riu Nanda — mas o que é que você tem de bom pra oferecer para a gente?"Dois tiros cada"
— Hoje temos sanduíches de pão de batata com queijo.
— Me parece bom. Você vai querer Nanda?
Ela meneou a cabeça que sim e eu anotei no bloquinho.
— Querem beber algo?
— Suco de laranja.
— Certo. Eu volto em alguns minutos, fiquei à vontade.
Eu sai o mais rápido e discreto que eu pude. Aquela manhã seria longa.
Atrás da janelinha da cozinha eu olhava para as duas se falavam sem orar. Eu tinha a impressão de não piscar e sentia meus dedos se fechando ao redor da caneta, apertando-a, até sentia minha unhas afundando na carne da palma da minha mão. Minha sobrancelha direita se ergueu involuntariamente quando eu as ouvir dizendo que em breve os outros colegas de classe chegariam.
— Para de encarar assim. Tá parecendo uma psicopata. — Noel estava do meu lado, lavando algumas colheres. Lentamente virei meu pescoço para ele e o olhei como olhava as duas. — Tô dizendo, você parece uma maluca assim e para com isso que tá me assustando.
Eu ri. E ele ficou surpreso. Dos oito anos que trabalhei ali, poucas vezes eu me permitia sorrir, na verdade eu não tinha motivos para tal. Me desculpei e levei os sanduíches para eles. Elas sorriram estupidamente e me perguntaram se eu podia pedir pro chefe fazer mais sanduíches, porque mais quatro iam chegar. Eu disse que sim e fui à janelinha avisar Noel.
— Moça! — ouvi alguém chamar. Virei a cabeça e vi um garotinho de mais ou menos oito anos. Ele estava na ponta dos pés e segurava o balcão com os dedinhos. Perguntei o que ele precisava e ele pediu um milk-shake de baunilha. Eu sorri, ele era louro e tinha as bochechas coradas. Enquanto o sorteve batia, eu rapidamente o ajudei a se sentar no banco do balcão.
— Obrigado
-—Você quer seu milk-shake com o que? Bolinhas de chocolate ou com cobertura de chocolate?
— Cobertura.
Entreguei - lhe a taça e ele deu um sorriso tão doce que meu coração se aqueceu. Eu o olhei tomar o sorvete por um momento, até que Alice surgiu atrás de mim.
— Tá atrasada. Muito atrasada.
— Desculpe, eu tive um imprevisto. Mamãe caiu da escada e quebrou a clavícula.
— Meu Deus, mas ela está bem não é?
— Tá sim, mas tive que fazer algumas coisas antes.
— Tudo bem Alice.
Eu sorri para ela.
— Quem é o garotinho?
Dei de ombros e lhe disse que ele apareceu ali pedindo um milk-shake, depois que eu falei para Alice não demorou muito para três homens e mais uma mulher entrarem no Café. Eu e Alice nos entreolhamos. Eu os conhecia. Eram Mike, Clóvis, Oscar e Clarice. E sim, eu não gostava deles. Eles entraram e se dirigiram diretamente para a mesa 22, onde Bianca acenava a mão. Respirei fundo mais uma vez. Alice me olhou.
— Quer que eu vá atendê-los?
Fiz que sim com a cabeça. Eu não queria encará-los. Voltei meu olhar para o menininho que terminava seu sorvete derretido.
Enquanto a Alice andava até a mesa eu ouvi Noel praguejar dentro da cozinha. Espiando pela janelinha eu vi com o dedo curvado segurando a mão.
— Droga — exclamou ele.
— O que aconteceu? — perguntei.
— Ah não sei, me cortei mas nem senti na hora.
— Nossa deixa eu ver.
Dando a volta eu entrei na cozinha, eu me aproximei e peguei sua mão o corte não era grande mas era profundo.
— Talvez Alice possa dar um jeito — Alice era enfermeira mas não quis trabalhar no hospital, o motivo ela nunca comentou — espere que eu vou chamá-la.
Quando sai na porta da cozinha Alice voltava segurando um bloquinho de notas. Eu a puxei para dentro, contei o que aconteceu. Ela sumiu e voltou trazendo uma maleta de primeiro socorros, ajoelhada ao lado de Noel ela me pediu para avisar aos clientes que o pedido deles demoraria um pouco. Encabulada, sai da cozinha e andei mesa por mesa ajudando, até chegar a mesa 22.
— Com licença, desculpe atrapalhar mas o pedido vai atrasar um pouco.
— Magarya! — Oscar gritou — quanto tempo.
Ele se levantou e me agarrou. Seus braços se fecharam ao meu redor e ele depositou o queixo ma base do meu pescoço. Eu não sabia o que fazer com as mãos então só as deixei no ar. Depois do que me pareceu uma eternidade ele me soltou.
— Poxa, você não mudou em nada, só está mais alta e talvez um pouco mais gorda. Ninguém pareceu notar meu desconforto, apenas se olharam e deram leves risos.
— Você também não mudou nada. "Continua o mesmo paspalho de sempre" — Bom mas eu preciso voltar ao trabalho, fiquem à vontade enquanto resolvemos o problema.
Eles resmungaram algumas palavras e eu saí. Deixei meu suspiro escapar quando entrei na cozinha. Alice e Noel me olharam. Ele já estava bem e voltara a cozinhar e Alice lavava as mãos.
— Cê ta bem?
— Tô sim — menti — Só preciso sair um pouco. Pode cuidar daqui não é?
— Claro, mas você vai voltar né?
— E eu tenho outra escolha?◇◇◇◇
Uma vez do lado de fora eu me sentei em um banco e olhei em volta. Não eram nem dez da manhã e o dia já tinha dado o que tinha que dar. Fiquei enrolando, não queria entrar. Olhei o chão e o céu aberto. O sol escaldava as pessoas sem perdão. Me abanei, o calor não me incomodava mas eu me sentia derreter e eu sabia que não era por causa do sol. Dando um breve olhar para dentro e suspirando mais uma vez eu juntei as forças e voltei para o Café. O garotinho que estava sentado no balcão tinha descido e estava com Bianca e sua turma. Ao lado dele estava Ângelo.
"Porra, agora fodeu"
Se o dia já tava ruim agora tinha piorado. Na cozinha Noel me disse que eu parecia muito mais abatida. Tentei desconversar e pedi para que Alice cuidasse da mesa 22 pelo resto do tempo que eles ficassem. Ela assim fez, eu evitava passar por aquela mesa e procurava atender as outras. Eu estava irritadissíma com aquela situação eles não iam embora nunca.
Riam e falavam alto contando suas aventuras como universitários e agora como pessoas de sucesso. Os trinta anos estavam me alcançando e eu não tinha nada enquanto eles tinham conquistado o Império de cada um e se gabavam terrivelmente por isso. Eu estava de costas para a saída quando ouvi eles passarem por mim, um a um deixando o Café, mas Bianca foi a última. Passando a mão pelas minhas costas ela fez com que eu a olhasse.
— Escute Magarya, hoje à noite a turma vai se encontrar na escola. Às oito. Por que não aparece por lá? Afinal você era da nossa turma.
— Quem sabe eu vá.
Bianca sorriu e deixou o Café."Cacete, pelo visto não tenho um dia de paz"
Abaixei os olhos e continuei limpando. Mal falavam comigo, não me chamaram para enterrar a maldita cápsula do tempo e depois de dez anos longe eles resolveram aparecer e virar meus amigos. Com toda a certeza eles não se tornaram pessoas melhores e não estavam tentando evoluir espiritualmente e na minha cabeça eu imaginava que eles planejavam alguma coisa contra mim, talvez fosse o trauma ou talvez fosse real.
Eu não sabia. Eu não sabia nada e preferia ficar sem saber.
Contei para Alice e Noel o que Bianca me disse.
— Você vai né?
Juntei as sobrancelhas.
— Tá maluca? Claro que não. Vou fazer o que lá? Pagar de idiota perto deles.
— Ah Mag, você tem que sair mais vezes.
Detesto sair a noite.
— Vou ver no que dá. Mas não garanto que eu vá.
— Se você for, amanhã eu quero saber de tudo.
Em casa, deitada no sofá e olhando o teto ouvi o sino da igreja batendo. Não sabia o que pensar. Minha mente tinha viajado para tantos lugares e assuntos que eu me sentia tentada a sumir. Lembrei do convite de Bianca, ah mas nem fudendo que eu ia.Fui.
Vesti meu melhor vestido e calçei meu melhor tênis. Meu cabelo tava solto e meio bagunçado, mas Noel dizia que era meu charme e eu acreditei.
Assim que cheguei na escola, vi vários carros muito chiques parados no estacionamento da frente. Respirei fundo e entrei. O corredor estava mal iluminado e eu não tinha ideia de para onde ir. Tentei ouvir mas nada. Então eu pensei em ir até nossa antiga sala de aula e lá estavam eles. Em roda com as carteiras eles falavam sem parar e havia um único lugar vago. Dando uma leve batida na porta eu entrei. Todos me olharam e eu senti meu coração querer escapar pela boca. Bianca gritou meu nome e pediu para que eu sentasse na cadeira vaga, ao lado de Mike e Donna. Dei um leve sorriso para eles e me sentei.
Pelo pouco que eu havia entendido eles falavam sobre a escola e como tinha sido o ensino médio para eles. Cada um teria de levantar e falar sobre.
Aquilo era humilhante, quer dizer que eles esperavam que eu falasse sobre a minha vida descartável na escola? E sobre os momentos horríveis diários que eu gostaria de ter esquecido mas que não esqueci?
Não, não quero falar disso. Bando de porcos mal tratados, estúpidos e imbecis, não passam de excrementos da terra. Eu os humilhava mentalmente quando Bianca disse meu nome.
— Magarya, agora é sua vez. Nos conte como foi sua vida no ensino médio."Sério vadia?"
Olhei em volta e vi Ângelo me encarando. Eu não sei o que me deu na hora, mas levantei e saí da sala. Uma vez no corredor eu corri até chegar em casa.
Se eu dormi a noite nem mesmo eu sei.
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contos da meia noite
Mistério / SuspenseUma série de contos, não de terror, mas que fazer a mente voar alto. Nem sempre a realidade vem a calhar. Vocês acham que real e sobrenatural estão conectados? Não são histórias longas, para que sejam lidas com fluidez e compreensão, algumas até p...