Fera Enjaulada - Então você descobriu

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Sábado. Meu último dia antes da folga. Infelizmente aos sábados eu trabalhava à tarde, até umas oito da noite. Mas pelo menos eu trabalhava com Noel e Alice.
Dormi mal a noite de novo. Mas o banho morno resolveu meu problema. De manhã eu não fiz nada além de ficar deitada na cama, lendo e me imaginando em um lugar totalmente diferente. Era um tratamento. Por um instante eu tive a sensação de viscosidade em mim, então me levantei e tomei banho, lavei o meu cabelo e almocei. Meu corpo amoleceu mas tive que vencer a preguiça e correr para o Café. O clima lá não estava dos melhores. Perguntei o que tinha acontecido e eles me disseram que mais pessoas tinham sido atacadas.

"Porra, não tenho um dia de paz"

Me questionei do porquê aquilo estar acontecendo, quer dizer a minha cidade era uma maravilha e isso vinha e acontecia. Droga. Quando perguntei quem havia morrido eles não souberam responder. Mais uma vez não me importei. Afinal, pessoas morrem todos os dias, mas me senti vazia outra vez. Eu observei as mães buscando e levando seus filhos ao colégio, a criatura estava mesmo assustando as pessoas. Justo naquele dia que eu teria que ficar até mais tarde. Noel se ofereceu para nos acompanhar, mas era bobagem.

Ele podia acompanhar Alice, eu não tinha medo de morrer.

Era não mais que 15:00 quando o jornaleiro passou, entregando um exemplar para nós. A primeira notícia não era uma coisa que eu esperava ler. Dizia:

FOLHA DE PORTO FINO

ATAQUES CONTINUAM:
HOMEM MORRE E CORPO É ENCONTRADO EM MATAGAL
Ângelo Antunes, de 28 anos é encontrado morto após sair da casa de uma amiga. O corpo possuía sinais de agressão e pouco sobrou dele. A cabeça foi arrancada e jogada ao lado. O coração foi arrancado do peito com a vítima ainda vida. Não há digitais e nem evidências de quem tenha feito isso. As investigações começaram e não pretendem parar.

Ângelo morto? Pela primeira vez meu peito se apertou e senti meu estômago se afundar.

Alice tomou o jornal de minhas mãos e mostrou a Noel. Eu estava em choque. O que não havia me abalado em anos e dias me abalou naquele momento. No entanto quando uma lágrima escorria pelo meu rosto tive um estalo na memória e me lembrei de algo que era fundamental nesse caso.
Deixei a lágrima rolar mas não permiti que mais delas saíssem. Não havia motivos para isso.

Alice me questionou como eu estava, respondi que iria ficar bem, mas na verdade eu estava ótima.
Não parei de trabalhar naquele dia. Dr. Pimentel estava lá, pedindo torta com chá gelado. Eu procurava tratar todos muito bem. E a tarde teria continuado bem se eu não tivesse olhado para fora e visto como o céu estava magnífico, a lua se escondia em meio as poucas nuvens. Era não mais que 19:00 e muitas pessoas tomavam sorvete no Café.
Bianca apareceu. Dessa vez ela não chorava mas seu rosto estava avermelhado e eu sabia muito bem o motivo. Ela correu até mim. Eu atendia uma mãe com um filho.
- Você é maluca? - gritou Bianca.
- Que? Maluca e você que chega gritando no meu trabalho - retruquei.
- Você é uma psicopata. Sua maldita.
- Tá falando de quê vadia?
- Tô falando - ela sacudia a mão perto do meu rosto, - das noites que você passou na frente da minha casa, me olhando, tô falando de você ser um animal, você é um monstro. Eu confiei em você. Eu não sabia que era você, até te ver se esgueirando por entre as sombaras. Sem dizer que eu vi você dançando com a cabeça do Ângelo e toda encharcada de sangue.

Um flash de memória passou pela minha mente e eu voltei a noite em que dancei uma música muito boa, a batida me envolveu de um jeito que tive que dançar, mas aquele foi um momento de falta de lucidez.
E nesse momento, dei um beijo de despedida em Ângelo. E sim, era por causa disso a sensação de viscosidade em mim.

"Uh pelo visto alguém descobriu meu segredinho."

- Eu sei que é você quem ataca as pessoas, sua criatura infernal.
As pessoas ao redor nos olhavam assustadas e confusas.
- Não seja maluca Bianca, e pare de gritar, está assustando meus clientes.
- Para de cena sua bruxa. Mostre quem você realmente é.

"Já que você insiste"

Eu sorri para ela. mostrei meus dentes, dessa vez os verdadeiros. Ela gritou e correu.
Com um pulo, senti meus ossos se partirem e minha pele se dissolver. Em um segundo depois eu corria atrás dela na forma de um cão.

Pois é, aquela era a causa das minhas dores no corpo.

Eu percebi depois de ler a matéria. Se não me engano, já havia contado sobre minha personalidade monstruosa, mas nunca cheguei a mostrar para alguém, afinal as pessoas corriam.

A fera que eu passei tanto tempo aprisionando resolveu se soltar e por isso eu me sentia tão leve.

Ah e depois que ela saia ela não voltava mais.

A única coisa que eu ouvi depois de sair do Café foi uma enxurrada de gritos de terror, vindo até mesmo de Alice e Noel. Mas eu não parei, quanto mais Bianca corria, mais eu corria atrás dela. Devo confessar que matá-la foi extremamente fácil. Mas o que posso fazer, ela não correu rápido o suficiente para fugir. Quando eu a alcancei, mordi seu calcanhar e a derrubei, depois pulei por cima dela e funguei em seu rosto. Eu não podia falar naquele forma, mas um único olhar meu bastou para Bianca. Eu queria vê-la sofrer e eu consegui matando Ângelo e seus amigos. Agora ela cuspira no meu focinho, dei uma leve rosada para ela antes de lhe morder o pescoço com força.

Não se preocupem, ela não emitiu som algum nem mesmo dor. Eu até poderia comer seu coração mas eu não queria, ele não valia nada para mim. Só o prazer de matá-la já me satisfez.

Agora eu estava realizada completamente.
Dei uma breve olhada para trás e vi as pessoas no Café. Minha vontade foi de rir. Corri para a casa.
No portão de casa eu já era uma pessoa de novo. Entrei, me olhei no espelho e admirei no espelho. Meu cabelo estava bagunçado, minha boca e dentes estavam sujos de sangue. Abri o chuveiro e entrei debaixo.
A água morna me lavou e levou meus problemas, não todos, mas a maioria. Ah, eu me senti tão feliz.
Achei que alguém fosse aparecer na minha casa, mas ninguém veio e isso era uma vantagem. Bom, eles podiam estar planejando algo conta mim, como invadir minha casa e atirar em mim, mas eles sabiam que eu sabia que isso não resolveria nada.

◇◇◇

Era madrugada por volta de 2 ou 3:00 da manhã, eu saí de casa com apenas o dinheiro das minhas economias, dinheiro esse que eu guardei por tantos anos esperando aquele momento.
Eu ia embora daquela cidade, eu finalmente ia tomar coragem e ia deixar tudo e todos para trás, então eu saí, mas antes eu tive que fazer um pequeno serviço. Com uma caixa de fósforos, uma pequena garrafa com gasolina e uma pá eu caminhei até a escola. Uma vez no pátio eu sabia exatamente onde a cápsula estava enterrada e, debaixo de uma frondosa árvore eu escavei até encontrar a cápsula. Eu a tirei de dentro do buraco, limpei, abri e vasculhei seu conteúdo. Não havia nada além de cartas, videogames e algumas camisetas, fotos da turma em que eu não aparecia em nenhuma. Eu não tinha o porquê guardar aquilo comigo, não havia motivos, não havia pessoas e não havia compaixão.
Em um balde que eu encontrei por perto, joguei as coisas da cápsula dentro, despejei a gasolina, acendi um fósforo e vi elas queimarem e queimaram como folha seca. Depois que eu vi a fumaça subindo eu deixei tudo para trás e fui embora sem olhar o que eu deixava. Na saída da cidade eu me deparei com Noel.
- Eu tava esperando por você
- Esperando por mim? Não seja tolo. E como sabia que eu iria embora justo agora?
- Eu estava te seguindo - confessou.

"Mas é muito tonto mesmo"

- Eu sei, pensa que eu não vi?
- Você não vai me devorar, vai?
- Isso depende.
- Eu sei o que você é, eu vi lá. Todos viram. Mas eu sinto que você tem algo muito mais muito além daquela criatura. Não vai, fica.

"Como assim, seu maluco?"

- Você sabe que eu não posso ficar. Por que você não vem comigo?
- E para onde você vai?
- De preferência para muito longe daqui. Vem comigo.
Eu estendi minha mão para Noel. Ele olhou para ela e depois para mim, por uns instantes ele olhou para a cidade, depois olhou para mim de volta e com um suspiro carregado ele pegou e minha mão e disse:
- Vamos.

"Se eu não matá-lo no caminho, podemos até formar uma família."

Enquanto caminhávamos eu percebi que passei toda a minha vida fugindo do meu passado, fugindo de mim mesma para no final eu surtar. Mas o surto foi a melhor coisa que eu poderia ter feito, me senti leve e pela primeira vez, o ensino médio já não era mais meu problema. Agora eu poderia enfim viver bem, com minha fera enjaulada, longe de todos.

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