Prólogo

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Anotação datada do dia 27/02/1900.

Hoje matei meu pai. Ou ontem, não lembro bem. Mas me lembro da cena perfeitamente. Ah, sim, a cena! Foi um espetáculo e tanto.

Eu planejava aquele crime desde 1885 — ou seja, quinze anos atrás. Me casei pensando somente em como eu poderia matar o meu pai. Mas é válido denotar, é claro, que não foi por mal. Ele já estava velho e não saía da cama desde o incêndio. E eu também estava um pouco cansada de ouvir o nome dele por tudo.

Houve ainda um motivo a mais, creio que o principal — a morte dele seria algo muito proveitoso financeiramente para mim. Não só para mim, mas para minhas irmãs! Eu, coitada, sou a mais nova entre elas, numa infeliz família de três mulheres que têm de se apoiar nos malditos maridos para qualquer assunto. Isso, é claro, com exceção de Tina. Essa não tem mais marido, mesmo.

Dinheiro nunca foi um problema para a nossa família, não me entenda mal, é que eu estava um pouco insatisfeita. Sempre falaram da grandiosa e majestosa família Dartmoor, e nossas raízes podem ser traçadas desde sabe-se lá quando no século XVIII, mas eu continuo me sentindo deveras excluída dessas riquezas. Quer dizer, nasci na França, herdei o nome e as características da minha mãe francesa e, como ela morreu por complicações no parto, comecei a ser tratada como um saco de lixo ambulante por todos. Ninguém quer admitir isso, e, no entanto, eu sei que é verdade.

Ele gemia. Sempre gemia durante as madrugadas. Estava tudo tão escuro, mas para mim os fatos nunca foram tão claros. A adrenalina e o sentimento interno de uma intensa schadenfreude causaram em mim uma sensação semelhante a quando passo o pincel sobre um quadro.

Gosto de pintar, às vezes. Já até publiquei uma obra. Foi no mesmo dia do assassinato, inclusive. Talvez tenha sido uma preparação. Sim, uma preparação para aquele momentum, aquela ligeira e deliberada ação de pegar a almofada em que ele estava apoiado e enfiar na cabeça dele com toda a força possível. A mais esplendorosa e formosa de todas as preparações, para o mais formoso e esplendoroso de todos os crimes.

Acho que levou uns três minutos. Durante esse tempo, eram comuns os tremeliques, espasmos, gemidos breves e outras reações corriqueiras de uma pessoa prestes a morrer. Contudo, esses ruídos eram suficientemente suprimidos pelo tecido forte do travesseiro. Ou era o que eu pensava.

Quando eu finalmente conseguia sentir as forças do meu pai se esvaindo gradualmente, aconteceu. Vi, pelo canto do olho, minha irmã Bethany abrir a porta do quarto de forma lenta. Meu corpo imediatamente congelou, assim como o do velho estava prestes a congelar, e rapidamente posicionei a cena — ajeitei a arma do crime e me joguei à frente do homem para que Beth não notasse o estado precário da vítima.

— Papai? Está tudo... Ah, Suzanne! O que você está fazendo aí? — Ela parecia ansiosa sob seus reluzentes e curtos cabelos louros.

— O papai me chamou. Ele estava passando mal, mas logo consegui ministrar alguns remédios.

— Ah, que bom! Posso vê-lo?

— Não! — gritei. — É... É melhor não, Beth. Confie em mim. Vá para o seu quarto. O que você está fazendo aqui, afinal?

— Você sabe que eu gosto de ficar acordada pela noite — Sorriu graciosamente. — Normalmente eu fico no meu quarto, mas vim aqui porque... achei que tinha algo errado. Ouvi o papai gemer.

— Como eu disse, não foi nada, Beth. Pode ir, obrigada. Eu cuido do papai.

— Certo, certo — Bethany rapidamente fechou a porta, enquanto eu rangia os dentes de tanta raiva. Aquilo ainda iria me causar muita dor de cabeça.

Com o coração ainda mais pulsante, finalizei o trabalho. Não foi tão difícil, visto que ele já estava quase morto. E, aliás, notei que foi uma boa ideia ter me intrometido na frente do corpo. Mesmo antes de morrer, estava pálido como um quartzo.

Demorei um pouco para me acalmar. Tive que beber um copo d'água e me alongar para expulsar os pensamentos paranoicos da minha cabeça. Pensei até em matar a minha maldita irmã, me livrar de todas as testemunhas. Todavia, logo desisti dessa ideia. Vi que não seria inteligente. Não naquele momento.

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