Capítulo 4 - Sem Crises

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 Philippa Evans é o nome da minha psicóloga. Mesmo estando longe de tudo e todos agora, lembro dela perfeitamente: cabelos lisos e louros, uma pele hidratada e clara e olhos absurdamente verdes, tão lindos quando esmeraldas brutas. Foi a única psicóloga mulher que consegui encontrar nos arredores de Londres, e a única que pareceu disposta a me ajudar, apesar de não ter sido designada para ajudar pessoas sãs.

— Então, Suzanne, como vai a vida? Alguma atualização sobre a sua família? — ela indagou, de forma concisa.

— Definitivamente. Desde a morte do meu pai, tudo tem sido um turbilhão. Nessa última semana, eu tive que aturar os discursos da Tina, o dia inteiro. Ainda me lembro de quando aquela insuportável interrompeu minha leitura para falar sobre negros. Ficou furiosa com aquelas duas jornalistas idiotas que foram nos entrevistar e ficou dizendo: "Ah, Suzanne, você não vê? É o ápice da imoralidade! Duas mulheres, que deveriam estar cuidando de seus maridos e filhos, averiguando casos criminais como se fossem da polícia! E, ainda pior, uma delas é negra! A própria maldição de Cam!*". Ela fala sempre as mesmas asneiras o dia inteiro. Já estou enjoada, sinceramente. Christina se passa como rija e dura, mas não passa de uma mulher fraca e insegura!

"Ah, e isso sem contar, é claro, os outros. Christina é só parte dos meus problemas. A Beth, de um dia para o outro, começou a me acusar de assassinato, como se eu tivesse a coragem de ter matado meu próprio pai! Veja, Philippa, acho que a coitada ficou traumatizada com a morte do papai. Ela era muito apegada a ele. Mas isso também não justifica ela chegar e me acusar, como se eu tivesse propositalmente feito algo contra ele!"

— Propositalmente? — Seus olhos inquisidores se contorceram.

— S-Só jeito de falar... Mas enfim, fico feliz que Betty não consiga espalhar seus ideais malucos. Ninguém mais acredita nos gritos desesperados dela, e um policial chegou a recomendar que ela fosse ao manicômio. Eu acho uma boa ideia. Está claro que ela não está em pleno domínio das capacidades mentais, principalmente por conta do luto. Afinal, ficar acusando a própria irmã é, além de desrespeitoso, um crime! Sim, seria bom se ela fosse a um lugar melhor.

— Seria?

Novamente, uma pausa constrangedora se instaurou.

— A-Acho que sim...

— Prossiga.

— Eu também estou com problemas com meu marido. O Imannuel diz que eu sou fria. Sinceramente, às vezes quero escapar dele — Observei o horizonte, calmamente. — Acho que é isso.

— Bom, Suzanne... — Ela anotou vigorosamente em sua prancheta. — Você falou um monte sobre os inúmeros problemas que você sofre por conta da sua família, mas eu me pergunto se esses problemas não estão disfarçando algum conflito interior seu. Pelo que você me descreveu, eu vejo que todos estão desconfiados de você, e que você está se sentindo abafada em meio à tanta desconfiança. Não haveria, dentro de você, algum segredo muito obscuro que você está tentando guardar a todo custo, mas que só te corrói por dentro mais e mais?

Gelei de medo.

— Não.

— Bom, se você não quiser me falar sobre isso, tudo bem. Mas saiba que eu estou livre de julgamentos, Suzanne. Totalmente livre.

— Eu acho que, quando se trata de certos assuntos, ninguém é totalmente livre de julgamentos. Ninguém.

— Algum problema com julgamentos, além da Bethany?

— Sim, na verdade. Eu estou um pouco desesperada por dinheiro, entende, Philippa? Em certos aspectos, sou um pouco feminista, sim. Não revolucionária, mas talvez feminista. Almejo a ideia de ter meu próprio dinheiro e me sustentar sem a necessidade do meu marido. Afinal, eu quase não vejo o Imannuel, mesmo, de tanto que ele trabalha. E, então, acho que já lhe contei, decidi pintar um quadro. Bobagem! Uma asneira impressionista qualquer — Olhei fixamente para o chão, antes de elevar o tom. — Mas o que eu definitivamente não suporto é ver outras pessoas depreciando o meu trabalho!

— Como?

— O fundador do Sharp Critics, um tal de... Bendy Gerard? Bennet Leblanc? Algo assim. Ele me criticou de forma muito severa. Minha vontade é de enfiar um punhal nas entranhas dele.

A psicóloga logo arregalou os olhos, surpresa. Imediatamente, um sentimento ardente de arrependimento me invadiu, conforme eu rapidamente retomei minha postura sensível e cautelosa.

— Veja, Suzanne, talvez você precise resolver a sua situação com esse tal crítico. Encontrá-lo pessoalmente, ter uma conversa civilizada... Pode ser importante para evitar quaisquer problemas.

— É! Isso mesmo! Ah, Philippa, você tem toda razão. Vou fazer exatamente isso, prometo!

Segundo a Bíblia, Cam era o filho de Noé que viu a nudez do pai e, por isso, foi amaldiçoado pelo mesmo. Algumas interpretações da Bíblia argumentam que essa maldição teria sido responsável pelo surgimento da pele negra, como desculpa para o racismo e a escravidão.

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