Uma semana havia se passado desde a fatídica morte de Christina. Li em todos os jornais: ela chegou a ir ao hospital, mas foi em vão. Morreu poucos dias depois do atropelamento.
Numa bela noite outonal, eu e Carolline ingressamos na casa de Felix, com apenas um objetivo em mente. As estrelas consumiam o céu, conforme Gaul nos recebeu fervorosamente, enquanto batíamos à porta.
— Sejam bem-vindas, minhas caras — esboçou, alegremente. — Tenho um espetacular presente para lhes dar: uma seleção de vinhos, colecionados pela minha família desde 1866. Vocês sabem, os Gaul são produtores de vinho renomados...
— Tudo bem, Gaul — Eu sorri, em resposta. — Fico muito feliz pelo vinho.
— Ah, eu adoro vinho! — apontou Carolline. — Será uma honra!
— Tudo bem, então. Eu já preparei suas taças. Estão sobre a mesa de jantar.
Entramos, alegremente. De fato, um conjunto deveras caro de taças de cristal estava armado sobre a tábua redonda, adornada com seis garrafas de vinho no centro. O promotor, imediatamente, pôs-se à frente do objeto, explicando cada uma das relíquias que ele possuía. Não lembro bem qual era qual. Só sei que havia uma amostra de vinho do porto e um bordeaux, talvez.
Não é isso o que importa, contudo. Enquanto Felix se alongava em sua explicação, pude perceber um detalhe um pouco desconcertante: sobre a mesa, havia uma quarta taça.
— Gaul! — interrompi. — De quem é essa quarta taça?
— Veja com seus próprios olhos — Fez um sorriso malicioso. — Foi o homem responsável pela veiculação da notícia de canibalismo. Um amigo da França.
— Da França?
Imediatamente, um homem esbelto, já atacado pelos males da idade, se avultou pela porta da sala de jantar. Seus cabelos e barba totalmente brancos criavam um contraste com seu rosto cálido, frio e esquelético, bem como suas roupas elegantes, um tanto parecidas com as de Gaul. A exceção é que, naquele dia em específico, Gaul usava um paletó vermelho claro, ao invés do tradicional preto.
— Giraud? — murmurei, descrente no que via. Diferente de Beckmann, ele era muito mais reconhecível e parecido com sua versão mais jovem.
— Boa noite, senhorita Martinez. Não sabia que me conhecia.
— Mas é claro! Eu me lembro da Ilha Pantheon como se tivesse acontecido ontem! Foi muito marcante.
O brilho nos olhos de Édouard sumiu. Seu semblante, antes levemente animado, voltou a ser triste e infeliz.
— Eu não gosto de falar sobre isso, senhorita Martinez.
— Ah, certo. Me desculpe.
— Por favor, vamos encher nossas taças! — gritou Felix. — Carolline, você primeiro. Acho que gostaria desse vinho do porto.
O jovem homem logo pegou uma garrafa belamente adornada e pediu para que Carolline segurasse sua taça. Enquanto ela degustava, eu decidi me isolar um pouco com Giraud.
— Giraud! — sussurrei. — O que houve?
— Nada — Olhou para os lados, tentando desviar-se de mim.
— Giraud, eu sei que foi Selena quem matou todos. Beckmann me contou.
— Certo — Suspirou. — É algo muito tolo, Dolores, mas... Eu acho que o fantasma de Selena está me perseguindo.
— O quê?
— Eu sei. Posso parecer um lunático, e talvez eu realmente seja. Mas tem algo errado.
— Algo errado?
— Selena. Eu a sinto, por todos os lados. A vejo nas quinas e cantos, a ouço chorando e gritando durante as madrugadas infernais. É como se... ela estivesse viva.
— Selena? Viva?
— Não sei. Não sei. Eu vejo seu espectro, sua sombra, mas ela em si parece mais distante do que nunca. Temo que eu esteja enlouquecendo.
— Dolores! Édouard! — interrompeu Felix, pondo-se entre nós. — Vamos brindar. Preparei as taças de vocês.
— Ah, claro! — respondi, antes de pegar o copo reluzente que transluzia-se sobre a mesa. — Então, senhores, a única coisa que tenho que oferecer a todos é a mais honesta congratulação por ter vencido todos os nossos maiores empecilhos. É claro, tivemos muita ajuda do acaso, mas foi mérito de uma pessoa aqui a manchete mais chocante da Europa: Carolline Freudenberg. E também, é claro, é importante mencionar a ajuda do sr. Felix Gaul em questão de estratégia e do sr. Édouard Giraud na divulgação da notícia para toda a Europa.
— E a você, Dolores — apontou Carolline, seu rosto com uma feição de destreza e uma beleza incomparável. — Afinal, foi você quem escreveu a notícia, não foi?
— Bom... Se quiserem beber em minha homenagem, eu estaria muito grata — Corei, enquanto uma risada sutil saía da minha boca. Eu tentei fugir do olhar da minha amiga, tão forte e sugestivo. — Então, um brinde a todos nós!
De imediato, nossas taças se tocaram, ao alto. O meu vinho, um branco madeirado, estava excepcionalmente bom, com um toque levemente frutado e uma alta quantia de taninos.
— Ah, agora que estamos todos bem, eu devo falar — começou Felix. — Já que a reputação de Suzanne está arruinada, basta ter uma prova concreta de que ela é a assassina. E isso não é muito difícil. Afinal, Dolores testemunhou a morte de Beckmann e chegou a denunciá-la. Com um depoimento desses, poderíamos enfatizar uma pequena pressão para que a polícia encontre Suzanne.
— Certo, certo, pode ser — afirmou a outra moça, além de mim. — Isso tudo está muito ótimo, mas... ainda há um grave problema. Como podemos garantir que Suzanne não vai fugir? Ir até uma ilha na América Central ou algo assim?
— Ah, isso não podemos garantir — respondeu Giraud, balançando sua taça rapidamente enquanto olhava para todos nós com um rosto vingativo. — Mas não é tão fácil ir para outro lugar, principalmente sendo tão infame quanto Suzanne Opel. Enquanto ela estiver se movendo para fugir, a polícia vai pegá-la. E eu tenho certeza absoluta disso.
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Sem Testemunhas
Misterio / SuspensoNo ano de 1900, em Londres, uma série de assassinatos contra a poderosa família Dartmoor ocorrem, praticados por uma mulher fria e longe de suspeitas - com exceção de um pequeno jornal de crimes. A trama se desenrola pela visão da curiosa jornalista...