Capítulo 14 - Sem Falta

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 Eu via a aurora do pôr do sol pela janela, receosa. Mordi meus lábios o tempo todo, andando indefinidamente de um lado para o outro enquanto pensava no plano. De todos os meus assassinatos, aquele seria o mais ousado e orquestrado. Estava apavorada, e somente a lembrança do crime contra a minha psicóloga me acalmava.

Enfim, suspirei. Mesmo pensando no pescoço de Philippa, no seu corpo caído no chão enquanto eu me erguia triunfante ao seu lado, continuava ansiosa. Mesmo imaginando tudo dando certo, a vingança perfeita contra todos que testemunharam ou ousaram suspeitar de algum crime anterior, me sentia despreparada. Seria minha arte final, meu magnum opus, a finalização de um ato antes de um longo e merecido descanso. E, talvez por isso, o estresse e a ansiedade eram muito maiores do que jamais haviam sido em toda a minha vida. Se algum detalhe mínimo desse errado, tudo estava arruinado.

— Carolline! — gritei, e a empregada logo chegou. — Me espere para preparar o jantar hoje. Eu estou indo em um compromisso muito importante.

— Tudo bem, senhora.

De súbito, ouvi a porta ranger. Gelei — era para eu estar sozinha em casa. Carolline adiantou-se em abrir e revelou, por detrás daquela superfície, a imagem letárgica do meu marido, Imannuel.

— Imannuel!

— Suzanne! Que bom te ver assim, expressiva!

— Eu... Eu... Por que chegou tão cedo?

— Pude resolver os problemas da fábrica mais depressa. Estive louco para ter você nos meus braços.

Rapidamente, aquele homem grotesco aproximou-se de mim, evidenciando suas costeletas marrons, cabelos lisos e longos e um sorriso imbecil e ridículo que sempre teimava em aparecer.

— Eu não tenho tempo para isso, Imannuel! Tenho um compromisso importante!

— Queria ter um pouco de amor com você. Nunca tivemos nenhum filho...

— Agora não, Imannuel, agora não! — Corri até a porta principal, desesperada.

— Suzanne! O que houve com você? Aonde está indo?

Antes que eu pudesse responder tais perguntas, a porta se fechou. Logo, tive que correr todo o trajeto contra o vento refrescante de Londres e ir para o lugar onde tudo começaria: o rio Ravensbourne, no sul da cidade.

. . .

Cheguei. Era um local remoto, coberto por árvores secas e urros de pássaros cujas espécies não chego nem perto de conhecer. Sentada com sua roupa rosa, perto do fluxo de água, estava Eva.

— Eva!

— Suzanne! Venha aqui! — Obedeci sua ordem. — Eu trouxe tudo o que precisamos. Hoje vai ser uma longa noite, mas irá nos trazer ótimos resultados! Um total de quatro mortes num só dia. E, ainda melhor do que isso, seu nome vai permanecer limpo e inocente para sempre.

— Certo. Mas antes, precisamos cuidar do corpo, não é?

— Exatamente — De suas mãos, retirou uma sacola de lixo enorme. — Sente o cheiro podre, insuportável?

— Sim.

— É porque já está decompondo. Por isso, devemos ser rápidas.

Luxemburgo rapidamente retirou, do saco, as partes esquartejadas do cadáver de Philippa. Alguns vermes e bactérias consumiram partes do que antes costumava ser sua pele linda e macia, mas ainda restavam detalhes belos e incomparáveis, especialmente na cabeça: olhos delicados, ainda que sem vida, o nariz retilíneo e simétrico, os lábios doces e rosados. Não iria me despedir desse corpo com tristeza e saudade de sua época vital.

— Pode ir — Eva apontou.

Calmamente, comecei a pegar cada parte do corpo e jogar, começando por um pé. Contudo, vendo que tal processo seria demasiado lento, e que eu precisava me atentar à questão do tempo, fiz um leve sacrifício interno e joguei tudo na água de uma vez só. Inclusive a cabeça.

Segundos se passaram. O fluxo era tão ríspido que já comecei a ver algumas partes sucumbirem — as mãos, os pés e o rosto. Depois, foi o tronco e os braços e, por fim, as pernas. Mas cada membro, para mim, demorou uma eternidade para ser afundado, conforme eu via seus últimos resquícios ainda ativos naquele fluido atormentado. Pude enxergar, de longe, o tom rosado da pele de Philippa, mesmo debaixo d'água. E, enquanto isso, pude igualmente me despedir dela. Tudo que envolvia Betty e o papai estariam acabados a partir daquela noite. O afogamento do corpo foi o primeiro indício daquilo.

— Feito! — Eva sorriu. — Agora podemos...

— Não.

— Não?

— Ainda falta uma pessoa para matar aqui.

— Mas quem? Não tínhamos combinado sobre...

De repente, passos puderam ser ouvidos pelos zunidos dos grilos e das cigarras. O doutor Frederick O'Neal surgiu, por detrás de nós.

— Olá, senhor O'Neal — eu esbocei, risonha. — Veio aqui pela minha proposta?

— Sim. O que exatamente você quer?

— Descobri uma forma muito eficaz para que eu ganhe dinheiro.

— E onde eu me envolvo nisso?

— Na sua morte!

— O quê?

Rapidamente, tirei um punhal do bolso e pulei em cima de Frederick. Suas mãos até tentaram me barrar, mas minhas facadas foram certeiras e ágeis contra seu peito.

Foi quase instantâneo. Caiu, avancei umas duas ou três vezes a mais e pronto. Estava morto. Na verdade, esse havia sido o assassinato mais frio e mecânico que já cometi, uma ação simples e repetitiva que não me proporcionou quase nenhum prazer.

— Você foi muito inteligente, Suzanne — apontou Eva. — Eu nem pensei nisso, mas de fato: esse homem sabia que Betty estava sã, e que você foi quem a pôs lá dentro.

— É — expressei, limpando os braços com certa indiferença. — Pois é.

— Agora, temos que cuidar do corpo e ir até aquelas jornalistas para... — Enquanto Eva falava, meti-me em sua frente e lhe beijei na boca. Assim que o fiz, ela corou e desviou o olhar, perdendo imediatamente o caráter agitado e entusiasmado de sempre.

— Você é a única coisa que tem me dado prazer, agora que nem matar me faz feliz.

— Adoro quando você faz isso... — Ajeitou-se. — Vamos, amor. Se matarmos essas pessoas, poderemos viver livres e ricas, isoladas de todos esses hipócritas. Para sempre.

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