A carta de Gary me deixou comovida. Sabia que ele era um rapaz muito gentil, mas não imaginava que se preocuparia comigo a ponto de fazer um relato tão preciso do que aconteceu em Battle Creek, por ocasião do sepultamento da senhora Ellen. Julguei que seria no mínimo falta de educação da minha parte não lhe escrever de volta para agradecer.
Para ser bem sincera, acho que li a carta dele pelo menos mais umas duas vezes antes de pegar a caneta-tinteiro e o mata-borrão para começar a escrever minha resposta. Abri a gaveta do criado-mudo e separei algumas folhas de papel colorido que eu usava apenas em ocasiões especiais.
"Bem, vejamos... Uma, duas... Acho que três são suficientes."
Com os meus apetrechos, me dirigi ao escritório, onde ficava a escrivaninha. Assim comecei minha carta:
Prezado Gary,
Fiquei surpresa e muito feliz ao receber sua carta. Você disse que não era repórter profissional, mas posso lhe garantir que fez um trabalho à altura dos melhores repórteres. Por causa da riqueza de detalhes que você apresentou, pude imaginar como foi a cerimônia e, em alguns momentos, até me senti como se estivesse presente. Muito obrigada, de coração!
Também gostaria de lhe agradecer pela dica que me deu enquanto estávamos na campal de Richmond. Ganhei algum dinheiro do meu pai, como presente de aniversário, e consegui comprar três livros novos, incluindo o que você mencionou.
Desde que voltei, tenho dedicado todo meu tempo disponível à leitura desses preciosos materiais. Também encontrei alguns volumes interessantes em nossa pequena biblioteca particular. Outro dia, estava conversando com uma de minhas amigas que, quando soube do meu interesse em conhecer mais a fundo a senhora Ellen, me emprestou um livro muito bom com informações sobre o começo de nossa igreja e a história dos pioneiros.
Eu conhecia apenas um pouco sobre os primeiros anos da vida da senhora Ellen. Sabia do acidente que ela sofreu quando era criança, ao voltar da escola. Sabia que ela e sua família acreditaram na mensagem que Guilherme Miller pregou sobre a volta de Jesus em 1844 e, que, depois do grande desapontamento, ela foi escolhida por Deus para ser uma profetisa para os nossos dias. Apesar da pouca idade (apenas 17 anos) e da saúde tão frágil, ela aceitou o chamado e se tornou a mensageira do Senhor.
É claro que já ouvi falar dos muitos desafios que ela teve que enfrentar para que o movimento adventista avançasse e alcançasse as proporções que tem hoje. Mas, Gary, tenho descoberto coisas tão impressionantes sobre essa mulher - algumas das quais eu não fazia ideia. Minha admiração só tem aumentado e tenho me sentido cada dia mais motivada a consagrar minha vida a Deus.
Se não se importar, meu amigo, gostaria de ir lhe escrevendo para partilhar com você algumas dessas descobertas. Mas não quero ser inconveniente nem aborrecê-lo com assuntos que podem não ser do seu interesse. Por favor, se eu estiver me comportando como uma chata, me avise na próxima carta e prometo que o deixo em paz.
Reli o que escrevi e pensei em apagar, porque me pareceu dramático demais, mas a folha ia ficar cheia de rasuras. Decidi arriscar e mandar o texto como foi originalmente escrito. Gary era um cavalheiro. Certamente entenderia... Pensei em começar contando sobre algumas coisas da infância de Ellen. Meu amigo sabia muitas informações sobre a senhora Ellen. Mas e sobre a menina Ellen? Observei que eu já estava para começar a segunda folha. Prometi a mim mesma parar na terceira. Afinal, não queria cansar meu amigo e, se ele concordasse e demonstrasse interesse, eu poderia lhe enviar outras cartas contando as outras partes da história. Escrevi:
Gary, você deve se lembrar de que Ellen teve uma irmã gêmea, chamada Elizabeth. Quando elas nasceram, o casal Robert e Eunice Harmon já tinha seis filhos: Caroline (15 anos), Harriet (13), John (11), Mary (6), Sara (5), que foi a irmã com quem Ellen teve mais afinidade, e Robert (quase 2). O pai de Ellen era agricultor, mas também fabricava chapéus. Tudo indica que o negócio com os chapéus estava dando mais lucro do que cultivar o campo. Assim, a família se mudou de Gorham para Portland, que era uma cidade com mais movimento devido ao porto. Cada membro da família tinha uma parte a desempenhar na fabricação dos chapéus. Ellen era responsável por modelar a copa, e ela fazia seu trabalho com muita dedicação.
Pouco tempo depois da mudança, houve uma crise financeira nos Estados Unidos, e os chapéus passaram a ser considerados artigos de luxo. Com isso, as vendas caíram muito. No entanto, o senhor Harmon ficou sabendo que no Sul se pagava muito melhor pelos chapéus e decidiu levar seu estoque para ser vendido na Geórgia.
Foi exatamente nesse período, quando seu pai estava em viagem, que Ellen sofreu o tal acidente. Sem nenhum motivo, uma garota mais velha começou a perseguir Ellen, a irmã gêmea e outra menina quando elas voltavam da escola para casa, depois das aulas. Ellen e Elizabeth haviam aprendido em casa a não revidar e a não entrar em brigas. Por isso, saíram correndo. Num determinado momento, Ellen se virou para ver a que distância estava a menina. Bem nessa hora, ela foi atingida em cheio no rosto por uma pedra que a menina havia jogado. A batida foi tão forte que Ellen desmaiou.
Os médicos não acreditavam que ela sobreviveria. Uma das vizinhas chegou a perguntar se não seria melhor providenciar uma roupa nova para sepultá-la. A mãe sempre acreditou em sua recuperação. E ela estava certa. Depois de três semanas em coma, Ellen finalmente acordou. Não se lembrava do acidente e não entendia por que as pessoas a olhavam de maneira estranha. Ela era esperta e sabia que devia haver alguma coisa errada. Pediu um espelho para a mãe e não se reconheceu no reflexo. Α fratura do nariz tinha sido tão séria que seu rosto ficara deformado. Para se ter uma ideia, quando o pai de Ellen voltou da Geórgia, ele não reconheceu a filha. Esse foi um golpe terrível para a menina de apenas 9 anos.
Depois de alguns meses, Ellen ficou melhor e tentou retomar suas atividades. Mas ela descobriu que nada mais seria como antes. Ela havia sido uma criança ativa, saudável, inteligente e graciosa. Agora as outras crianças se recusavam a brincar com ela, porque a achavam feia. Não entendiam que a aparência não quer dizer nada. Por dentro, Ellen ainda era a menina meiga, amorosa, amiga e preocupada com os outros.
Quando achou que estava em condição de voltar à escola, Ellen descobriu que não conseguia ler. As palavras se embaralhavam diante de seus olhos. A menina que tinha sido a mais brilhante aluna da classe e que havia ajudado muitas vezes a professora, lendo as lições para os demais alunos e até para as crianças mais novas, agora não conseguia ler nem escrever. Suas mãos tremiam. Ela sentia tonturas e às vezes desmaiava. A professora aconselhou os pais a tirarem-na da escola até que ela estivesse melhor.
Você sabia que o sonho de Ellen era ser professora? Agora esse sonho tinha sido arruinado. Que futuro teria ela? A menina Ellen não podia imaginar que Deus tinha planos muito maiores e melhores para ela. Hoje sabemos que planos eram esses. Mas ainda levaria um tempo para que a menina Ellen descobrisse. A única certeza que ela tinha naquela ocasião era de que Deus estava cuidando dela e não havia permitido que ela morresse.
Enquanto isso, a mãe de Ellen, Eunice, decidiu que a filha não ficaria na ignorância. Ela, que havia sido professora antes do casamento, dedicou-se a ensinar à filha as coisas práticas da vida e também os trabalhos escolares.
Ellen gostava de passar tempo na natureza. Seu lugar preferido era o parque Deering Oak. Ali ela estudava as árvores, flores e plantas. (Isso o faz lembrar-se de alguém?) Amava os animaizinhos e tratava a todas as pessoas com cortesia e bondade. Acho que agora dá para entender por que ela era uma pessoa tão sensível às necessidades dos outros.
Bem, Gary, acho que está na hora de parar... Daqui a pouco tenho que ajudar minha mãe nos afazeres domésticos e também não quero tomar muito do seu tempo. Vou ficar esperando sua resposta. Se for positiva, poderei lhe escrever mais sobre minhas fascinantes descobertas.
Obrigada mais uma vez por sua preocupação em deixar-me informada. Oro para que Deus o abençoe e cuide de você.
Com estima,
Anna Beatrice
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Vaso de Barro - Neila D. Oliveira
Espiritual"Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós." (2 Coríntios 4:7, NVI) Anna Beatrice é uma adolescente muito esperta, criativa e que ama descobrir coisas novas. Ela só não imaginava que sua d...