Capítulo 30 (A.f)

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Apesar da alegria, a tristeza ainda é fria.
Congela o coração, na dor da agonia.
A carne se racha, na superfície trincada.
Sangue vaza, e a dor sobressalta.

Ji-ham, subindo a colina, já estava bem distante da cidade. Na estrada de terra, rodeado por árvores, lidava com um silêncio esmagador, apesar do barulho dos pássaros e árvores balançando. Em sua mente flagelada, tentava conter os pensamentos intrusivos. Mas só o que conseguiu foi lembrar da última vez em que viu seu irmão, e as palavras tão crueis que desferiu contra o rapaz. Ele deve me odiar agora. Consequentemente acabou lembrando de seu pai, que sequer olhou em seus olhos antes de deixá-lo partir. Eu não devia voltar...

A porta vermelha estava bem na frente dele, bastava bater. Bater à porta... não é tão simples. Não quando você rasgou o peito do seu irmão, enfiando palavras afiadas no lugar mais frágil do seu âmago. Tudo por raiva.
Não quando o seu bicho papão é o dono da casa, e deixou você ir embora como se tivesse torcendo por isso há anos.

Inflou os pulmões, sentindo o ar gélido entrar pelas narinas. Piscou os olhos com mais força, tentando lutar contra a vista escura. Ofegando baixo, tomou coragem para bater à maldita porta. Então fez. De primeira, levantou o braço direito, para então lembrar-se de que não tinha mais aquela mão. Balançando a cabeça para ignorar a confusão, ele levantou o braço esquerdo.

Uma única batida e a porta se abriu. Toda a respiração intensa e ofegante parou. Ji-ham paralisou, sem saber o que dizer ao seu pai.

O homem era o mesmo que ele se lembrava: sem os traços asiáticos dos filhos, possuía um nariz grande, com uma lombada no meio. Seu olhar era severo, com uma marca de queimadura abaixo do olho esquerdo. Mas... Mesmo naquele olhar amedrontador, Ji-ham sentiu algo diferente. A barba estava por fazer, as roupas tão imundas de carvão quanto as mãos e o rosto do homem. A casa estava escura, com todas as janelas fechadas.

Após longos segundos de silêncio e olhares, o pai virou as costas, sumindo na escuridão da casa. Ji-ham permaneceu na porta, sem coragem para entrar. Então o pai voltou, segurando um caderno nas mãos, com um envelope em cima. Entregou na mão de Ji-ham e lhe disse apenas uma coisa.

― Colina do girassol.

Colina do girassol...
O lugar onde Kim e Ji-ham brincavam na época da boa infância. Onde crescia apenas um girassol, solitário e desprotegido. Quando os dois garotos não brincavam de guerreiros em um duelo de espadas, sentavam na beira da colina, e admiravam a bela vista. Comendo frutas ao pôr do sol, eles podiam ver todo o reino. O mar refletia as luzes do fim de tarde, tornando a vista sempre um belo espetáculo.

Mas tal coisa era do passado.
Agora, Ji-ham subia aquele morro tão solitário quanto o próprio girassol. Segurava o caderno de capa marrom contra o peito, e prevenindo a noite densa que se aproximava, levava um lampião consigo. As árvores da floresta ficavam para trás à medida que ele subia a colina. A grama espessa balançava com a brisa fria. Noite gélida estava por vir, deixando os últimos raios de sol baterem nas nuvens, gerando a tonalidade mórbida de vermelho.

Chegando no topo da colina, Ji-ham podia ver. Atrás do girassol solitário, como uma companhia eterna para aquele belo Helianthus, estava Kim. Sua homenagem era uma lápide de espessura fina e delicada, com seu nome lindamente entalhado na rocha, e uma frase feita por alguém que o conhecia bem.

Aquele que podia levantar tão fácil quanto caiu.

Fraco com o aperto que sentiu no peito, Ji-ham caminhou até poder se ajoelhar em frente ao girassol. Deixou o lampião ao lado da lápide, e abriu o caderno. Mas Ji-ham não conseguia ler. Havia tanta água cobrindo seus olhos, que ele precisou deixar escorrer. Foi a primeira vez que se permitiu chorar na frente de seu irmão, que apesar de morto, estava presente nas anotações daquele caderno. O peito de Ji-ham doía massivamente, como se estivesse nas profundezas do oceano, sendo esmagado pela dor que inundava seus olhos. No entanto, ele queria ler os manuscritos. Precisava disso, sentia que era a única coisa que estenderia o tempo que teve com o irmão. Então se esforçou para manter a calma, conseguindo ler um pouco da primeira folha.

"Eu te perdoo"

Apenas o início fez as lágrimas caírem sem controle. Suspirando, Ji-ham tentou voltar com a calma necessária para ler.

"Queria que fosse a primeira coisa que você recebesse de mim ao voltar: o meu perdão. Eu sei, porque é tudo que eu quero de você agora. O seu perdão me faria descansar em paz. Eu lamento não ter sido um irmão bom o bastante pra demonstrar o quanto te amo. Nunca quis transformar nossa relação em algo tão doloroso. Eu tenho tanta coisa pra falar. Sentir que vou morrer em alguns dias me faz querer te contar absolutamente tudo, sem o medo de você me ignorar ou ser agressivo. Eu espero mesmo que você leia tudo."

― Eu vou... ― deixou o caderno de lado, pois estava danificando as folhas com suas lágrimas. Não aguentava mais conter sua necessidade de desabar. Curvando-se contra o chão, Ji-ham chorou como nunca na vida. Recordando a última vez que viu o irmão, arrependimento se alojava em seu peito, de modo que não sairia por muito tempo. As palavras crueis perpassavam em sua mente, martelando o prego que adentrava seu coração. Você estragou tudo, Kim. Você já trouxe desgraça desde que nasceu... Você matou a mamãe. ― Eu sinto muito.

A noite já havia tomado conta do ambiente quando ele levantou o rosto. A brisa estava mais forte, com gotas finas de chuva. Lembrando do compromisso em comparecer no jantar com a família de Pheli'n, Ji-ham decidiu ir. Passou sua mão esquerda pela alça do lampião, podendo segurar o objeto pelo pulso, e levar o caderno com a única mão que tinha.

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⏰ Última atualização: Jul 07 ⏰

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