1- No princípio havia o verbo, e o verbo era Arr!

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Era a primeira semana sufocante de janeiro, ainda pegajosa com a ressaca do réveillon

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Era a primeira semana sufocante de janeiro, ainda pegajosa com a ressaca do réveillon. O céu cinzento do oeste catarinense já não enganava ninguém com a falsa promessa de chuva. E, na total ausência de vento, os mosquitos borrachudos assumiam o penoso papel de remexer o ar.


Pela porta de um Chevette dourado, estacionado na sombra úmida das laranjeiras da família Richter, vazavam duas botas de couro e a fumaça aromática de um cigarro de cravo.

A lataria, repintada inúmeras vezes desde a década de 1980, tinha seu brilho embotado por insetos mortos e uma fina camada de poeira. O amplo capô fora revestido com o decalque de uma caveira pirata, e a traseira, com múltiplos e estranhos adesivos. Um deles representava um esqueleto de peixe com tapa olho, enquanto no outro lia-se o versículo:

"No princípio, havia o Verbo. E o Verbo era Arr!"

(Piraticus 13:7)

Preguiçosamente esparramada no banco de trás, com o cigarro estalando entre os dedos e um laptop remendado aberto sobre a barriga, a pirata Artemísia Richter — orgulhosa capitã do carro-navio — tentava dormir para fugir de suas responsabilidades.

Era uma jovem alta e esguia, a pele negra-clara um pouco envelhecida pelo tabagismo e pelas noites em que esquecia de dormir. Suas feições masculinas e intimidadoras, marcadas por sobrancelhas baixas, lápis de olho borrado e nariz romano, eram suavizadas pelo sorrisinho irônico de quem sabe de tudo e se finge de besta. E os cabelos, uma confusão emaranhada de ondas, contas e trancinhas endurecidas de sal, enroscavam-se sobre o banco como algas marinhas.

Por ser a única da família que não tinha o costume de tirar a sesta, sua tia Neusa sempre lhe delegava uma lista absurda de tarefas domésticas a serem cumpridas enquanto todos dormiam:

Sovar os pães, lavar os pratos sujos do almoço, despejar o fedorento balde de lavagem para os porcos...

Houve uma época em que Mise cumpriria tudo isso com presteza e boa vontade, aproveitando toda oportunidade de se mostrar útil para não ser chutada para fora.

Com o passar dos anos, porém, ao se ver ensaboando panelas engorduradas enquanto os parentes roncavam pacificamente, as ordens começaram a lhe dar um gosto amargo na garganta.

Desde então, tornou-se especialista em se esquivar de suas obrigações. Uma alergia a produtos de limpeza aqui, um cochilo acidental ali...

"Esqueci!", exclamava com frequência, dando uma gargalhada e um tapa na testa.

Esses esquecimentos estratégicos - entremeados com os genuínos - se tornaram tão convincentes que sua avó paterna, a curandeira mais fajuta e requisitada da região, começou a lhe preparar um chá milagroso para a memória. De tão disposta a manter sua mentira, Mise forçou-se a tomá-lo uma única vez.

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