Divórcio

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A luz fraca da tela do notebook banhava meu rosto pálido. Três meses. Três longos meses desde o acidente que me roubou as memórias, me transformando em um estranho na minha própria vida. As palavras na tela, "Acordo de Divórcio", pareciam zombar de mim. Como cheguei a este ponto?

Olivia, meu amor de tantos anos, agora era apenas uma lembrança nebulosa. As crianças, meus pequenos, eram rostos desconhecidos que me provocavam uma dor aguda no peito. A culpa pesava sobre meus ombros como um manto de chumbo.

Levantei-me, o papel impresso em minhas mãos trêmulas. A casa que outrora fora nosso lar agora me parecia um mausoléu de um amor perdido. Respirei fundo e caminhei até a porta. A campainha ecoou pelo silêncio da tarde.

Olivia me encarou com espanto, seus olhos arregalados de surpresa. 

- Fernando?, sussurrou ela, hesitante. O que você...?

- Posso entrar?, perguntei, a voz rouca pela emoção.

Ela assentiu, abrindo a porta completamente. A casa cheirava a familiaridade, mas nada me era familiar na minha cabeça.

- As crianças estão na escola, disse ela, nervosa. O que você quer? Já estava indo para doceria.

- Vim te entregar isso, respondi, estendendo o papel. Um acordo de divórcio.

Seus olhos se arregalaram ainda mais, o choque se transformando em raiva. 

- Divórcio? Do que você está falando?

- Eu não sou mais a mesma pessoa, Olivia, expliquei, lutando contra as lágrimas. O acidente me mudou. Não me lembro de nada, nem de você, nem das crianças.

- Mas isso não importa!, exclamou ela, a voz embargada. Somos uma família. Podemos superar isso juntos.

Neguei com a cabeça, a dor crescendo dentro de mim. 

- Não posso ser o marido que você precisa. Não posso ser o pai que as crianças merecem.

- Você está cometendo um erro, ela insistiu, os olhos cheios de lágrimas. Por favor, Fernando, não me deixe. Saio da residência.

Olhei para trás uma última vez, vendo Olivia na porta, a figura solitária envolta em tristeza parada na porta. Uma lágrima solitária correu pelo meu rosto. Eu tinha sentimentos conflituosos dentro de mim, mas não podia mais ser o que ela precisava.

Continuei caminhando, sem saber para onde ia, mas continuava caminhando. Estou em frente ao consultório do Dr. Alberto. A noite chegou, e nem percebe. Subo até andar que toda a semana estou presente. Estou afastado por licença médica do cargo de delegado. A porta do elevador se abre e já avisto o consultório e ocupa todo andar. Chego na recepção, Dr. Alberto está se despedindo das funcionárias. Quando ele me vê, ele pede para elas organizarem tudo e poderia ir, pois iria me atender e depois fecharia tudo.

- Senta-se, Fernando. O que posso te ajudar. Aceita uma bebida ou água. Não será um atendimento convencional, estava indo tomar uma bebidas com amigos.

- Desculpa, incomodar o senhor, não quero nada, só desejo ter minhas memórias de volta. Faz uma nova cirurgia.

- Por que deveria abrir seu cérebro novamente?

- Para minhas memórias voltarem.

- É, se nunca mais voltarem, qual será sua decisão? Seguir em frente ou ficar preso na tentativa frustrada de recuperar as lembranças?

- Como assim, Dr. Alberto?

- Fernando, vou te contar uma história. A 25 anos atrás um homem recém casado, sofre um acidente de moto, sofre traumatismo craniano e fica amnésia. Ele e sua esposa têm um bebê de um ano de idade. Ele não se lembra de nada e de ninguém, mas o seu coração não deixou de amo-los, então continuaram sua caminhada juntos.

- O que aconteceu com seu paciente, Doutor?

- Suas mãos se lembravam do ofício da sua profissão, o corpo se lembrava das atividades físicas realizadas e o coração ainda amava aquelas pessoas que sua mente não se recordava. Essa pessoa, sou eu. 

- Ham, o senhor?

- Sim, nunca me lembrei, mas decidi amar a mesma família, continuar nadando e ser cirurgião neurológico. Fernando, pare de resistir, você já ama sua esposa e seus filhos, está aqui porque sofre por não se lembrar deles. Pare de tentar lembrar memórias passadas, e crie novas lembranças com sua esposa, filhos,amigos, trabalho e no laser. Viva a sua vida normalmente. Se tiver que lembrar você irá, mas se não, vai criar novas memórias. 

- O senhor tem razão, muito obrigado.

Retorno a pé para casa. Quando abro a porta vejo minha mãe em prantos, minhas irmãs com semblante sério. Todos com o rosto triste e angustiado. Entro decidido em seguir em frente, quando minha mãe me entrega um envelope.

- Você pediu divórcio, meu pai indaga.

- Eu pedi, mas estou arrependido. Por quê?

- Hahahahahahaha, então considere-se um homem livre. Carol diz em tom sarcástico.

Abro o envelope, o acordo assinado. Aliança, colar de urso e chave da casa. E um bilhete.

“ Fernando, assinei todas as páginas. Não quero nada seu, deixa sua residência e com relação às crianças, a hora que quiser vê-las me envie uma mensagem pode pegá-las. Desejo uma boa vida.”

Olivia Lopes

Todos me olham, realmente só tenho tomado decisões erradas.  Depois de alguns dias sem contato com as crianças, as peguei do lado de fora da doceria. A nova babá me entregou minhas crianças, tenho esperança de vê-la, mas infelizmente não aconteceu. Fomos ao parque de diversões, brincamos e nos divertimos. Fomos para casa. Desde então, retornei para meu lar. Parece que todos fizeram um pacto de não comentarem nada sobre Olivia. Isso tem gerado um desconforto no meu coração. Acabei destruindo o acordo. Estou preparando um lanche para as crianças, quando escuto elas comentarem na sala enquanto assistiam televisão.

- Mamãe, estava linda naquele vestido, vou desenhá-la. Juliana fala com Laura.

- Verdade, Jujuba. Ontem quando fomos no autódromo foi tão legal ver aqueles carrões.

-Vamos fazer um lindo cartão para mamãe.

Me aproximo com sanduíche de frango e suco de uva, vejo oportunidade de pergunta-los.

- Olha, o lanche que o papai preparou.

- Eles correm para pegar, a televisão está rolando filme “ Meu malvado favorito”. Eles devoram os sanduíches.

- Como está sua mãe?

- Ela está muito triste por sua causa, não quero ver papai com a mamãe. Juliana me diz bem direta.

- Oh, papai pode saber o motivo, que a senhorita não quer? Faço cócegas nela.

- Por que você fez ela chorar. Já pede um outro príncipe bem bonito para ela. 

- Como assim, Jujuba. Eu sou príncipe da sua mãe.

- Papai, não é mais. As meninas pediram um novo namorado para minha mãe, e ele já apareceu. Ele é piloto de carros. Ontem fomos vê-lo dirigir ele se chama Sebastian Gutierrez. Henrique fala.

- Papai, ela sorrir quando está com ele. Minha mãe fica linda quando sorri. Laura diz.

Aquele conversa faz meu sangue ferver, por algum motivo desconhecido. Finalizamos a tarde brincando no quintal, mas aquela conversa ecova na minha cabeça

ALGEMADO EM VOCÊOnde histórias criam vida. Descubra agora