Divisor de águas

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Os gritos começaram no quarto de William, a voz claramente era de Milk. Ele chutou a porta e disse para que todos ouvissem.

- E como você teve coragem de fazer isso, tudo embaixo dos panos?
- Eu... eu...

- Não, pai, não tem uma desculpa.

Os outros quatro irmãos vieram correndo para ver o que acontecia, não era comum uma briga tão grande acontecer assim, de repente.

- Ricky, abaixe seu tom de voz - Astrid segurou seu braço, seu nervosismo era visível. Era comum que as pessoas chamassem Milk pelo seu verdadeiro nome quando estavam com raiva.

- Ah, você fala isso mas não sabe o motivo dos meus gritos.

- Se acalme, independente do que for, não é necessário. Podemos resolver qualquer coisa se estivermos calmos, caso contrário, os resultados serão piores.

Ele ignorou as falas da irmã, como se estivesse convicto de suas atitudes. Desceu as escadas com pressa, evitando qualquer possibilidade fazerem uma pergunta.

- Ei, o que aconteceu?- Yan, preocupado, olhava fixamente para os olhos do pai.

- Eu estou com câncer.

Câncer, aquela palavra ficou marcada na cabeça não só do caçula, mas de todos os outros presentes. Aquela memória desagradável que não sai da cabeça.

- Então...

- Bem, eu sei o que vão perguntar, mas sim, meu cabelo está caindo por causa disso. A quimioterapia acaba comigo lentamente. Tenho 52 anos com aparência de um velho com 64, no mínimo.

Frases, daquelas que machucam até o fundo do coração.
O que poderia ser pior para um órfão do que perder os pais de novo? Alguns, como Milk e Beth, sequer se lembravam do rosto e da voz da família biológica, talvez por terem morrido há muito tempo, ou por terem sido abandonados. Do mesmo jeito, o aperto chegava no peito.

A pior coisa, sem sombra de dúvidas, foi como o tempo parecia passar tão dolorosamente lento, da pior forma possível. Por muitas semanas, William não conseguiu conversar com o filho mais velho, nervoso demais para tentar fazer as pazes. Rolf o levava para a quimioterapia, agora todos sabiam, não tinha mais aquela desculpa de "vamos fazer uma caminhada" e sumirem por várias horas.

O silêncio, de repente, tomava conta da casa. Mas não era como o que o público do circo fazia, era aquele causado pelo desentendimento, que trazia a tristeza. Tudo mudou da noite para o dia.
E, num piscar de olhos, Rolf precisou ser o apresentador dos espetáculos, e Mr. Henderson ficava na cama o tempo todo. No quarto de Yan e Tommy, o caçula tentava ser acalmado.

- Eu... não aguento mais isso.

- Ninguém está aguentando.

- Não quero ser órfão de novo.

- Nós não perdemos nossos pais daquela vez.

- Eles não morreram, mas...

- Chega de tocar nesse assunto.

Com um pijama vermelho, Yan chorava no ombro do irmão, suas mãos tremiam.

- Sabe qual é o meu maior medo? Ver esse tempo todo passar e não conseguir aproveitar.

- Ninguém sabe se vai ser o último dia do papai.

- É por isso mesmo, isso é tão incerto, é tão difícil...

E então, eles se envolveram em um abraço longo e apertado. Tommy podia jurar que sentiu o coração de Yan quase explodindo dentro do peito.

Deus! Como pode as coisas mudarem tanto?
Astrid não comentava sobre seus sentimentos com ninguém. Mesmo quando estava ao lado da cama do pai para entregar a comida, ficava calada. Talvez tivesse medo das brigas ficarem ainda mais frequentes.
Durante os piores estados de saúde, alguns fãs devotos do circo apertavam a campainha da casa e buscavam respostas para suas perguntas. Milk era quem atendia na maior parte das vezes.

- Boa tarde, o que aconteceu com o Mr. Henderson? Ele não aparece há tanto tempo - Uma mulher que provavelmente estava entre os 30 anos olhava para o garoto.

- Você é uma das sei lá quantas pessoas que querem saber disso, mas não nos sentimos confortáveis em compartilhar qualquer informação.

- Bom, mas quero saber apenas se...

- Nós só queremos que saia daqui, precisamos de paz, entendeu? Porra.

Ele fechou a porta e tentava manter a calma.

- Beth, a partir de agora você vai atender esse bando de curiosos, tudo bem?- Milk gritou, assustando a irmã. - Eu não aguento mais, que merda!

Qual dor é pior do que a ver alguém amado morrer aos poucos? Talvez nenhuma? Nunca se sabe. Basta uma lembrança doer o suficiente em uma pessoa que doerá o suficiente.

A saúde fraca de William, o mau-humor de Milk, as lágrimas de Yan, o silêncio dos outros moradores da casa, tudo se tornou torturante.

E, sem que ninguém soubesse, aquilo acabaria pior ainda, deixando uma cicatriz eterna.

Os filhos do Mr. HendersonOnde histórias criam vida. Descubra agora