A história de Tommy e Yan

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— Tommy — Murmurou tão baixo que provavelmente o irmão não havia escutado — TOMMY!

Sentado no quarto enquanto lia um livro da escola, fixou seu olhar em Yan.

— Oi.

— Eu p-preciso t-te contar uma coisa.

— Aconteceu alguma coisa?

— Não necessariamente, quer dizer... meu Deus, não sei explicar! — Disse em um tom de voz que demonstrava seu nervosismo.

Yan ajoelhou-se na frente de Tommy com as mãos tremendo.

— Tommy, eu descobri uma coisa.

— O que você descobriu, Yan? — Arregalou os olhos — Pode me falar.

— Eu sou trans... — Desabafou rapidamente — Quer dizer, quando nasci disseram que era uma menina, mas nunca consegui me ver desse jeito.

A boca do irmão se abriu, mas não conseguiu dizer nada.

— Não é fácil, nunca foi. Você deve se lembrar daquela época... é uma dor insuportável, Tommy. Imagina se olhar no espelho e não conseguir reconhecer que é a sua imagem sendo refletida ali. Ou além... imagina se comparar com todos os garotos ou garotas ao seu redor e, durante esse tempo todo, ficar imaginando como nunca será igual a eles. É isso que estive passando nesses 14 anos.

Lágrimas rolaram pelo rosto de Yan, mesmo que tentasse segurar o choro. O caçula podia sentir seu coração batendo rapidamente dentro do peito.

— Demorei muito para entender o que esteve acontecendo durante a minha vida inteira, eu sei. Foi Julian que me fez conhecer o que é ser trans. Desculpa...

— Não precisa pedir desculpas — Tommy murmurou.

— Hm?

— Eu sempre percebi que você era, digamos... diferente. Você ainda se lembra como eram as coisas quando éramos crianças?

— Acho que apaguei maior parte dessas memórias. Mas aparentemente você nunca se esqueceu, ainda tem aquela foto antiga que mostrou para os outros.

— É verdade — Apanhou o retrato e o observou — Eu e você, acho que isso foi há uns 9 ou 8 anos atrás.

— Mas o que tem de tão importante no nosso passado?

— Desde pequeno você deu pistas que não era uma menina. Acho que com 4 anos já pegava as roupas do nosso pai biológico e as vestia.

— Eu só lembro das surras.

— Essa sem sombra de dúvidas era sua punição. Era medonho ouvir seus gritos, foi então que comecei a tentar te defender.

— Sempre sonho com aquela cena... nosso pai me batendo enquanto estava deitado no chão, e a mamãe... me xingando de tudo o que podia, “vergonha”, “imundice”...

— Eu dizia para pararem com as agressões, e nem sei te explicar como nunca me batiam por tentar te ajudar.

— Pensando agora — Olhou para a camisa do Borussia Dortmund que vestia — Você que me deu isso?

— Foi. Todas as roupas velhas ou que eu ganhava de presente, mas detestava. Inclusive a sua touca — Apontou para a cabeça do irmão — Nossa avó tinha feito, mas sinceramente?, nunca gostei de vermelho.

— Ter cabelo longo era um pesadelo para mim.

— Foi dessa forma que bolei um plano para sairmos daquela casa. Era tarde da noite quando aconteceu. Peguei a tesoura e cortei seu cabelo, sabia muito bem quais seriam as consequências.

— E nossos pais viram.

— Isso mesmo. Confessei o que havia feito. Fiquei parado na sua frente para evitar outra agressão, já que isso nem faria sentido, quem tinha feito aquilo foi eu!

— Provavelmente essa é uma das poucas coisas que ainda lembro além das surras.

— Você tinha 8 anos naquela época, eu tinha 10. Muito jovens, mas com uma mente muito madura para entender o que estava acontecendo.

— Quando nós tínhamos saído de casa, fazia muito frio.

— É verdade — Tommy olhou para os lados — Peguei uma mala velha que havia no nosso quarto, separei todas as roupas ou objetos minimamente úteis e fomos para a rua. Nossos pais estavam muito confiantes na ideia de nos expulsar.

— Eu estava com umas 3 blusas e a minha touca.

— Não conseguia soltar as mãos de você. Estava com medo de te perder ou que ficasse doente.

Os dois se olharam e perceberam como, naquele tempo todo, estavam unidos desde a infância.

— Yan... acho que eu sempre estive tão dedicado em te proteger. Quando fomos para o orfanato, inclusive, dei um soco em um garoto que queria fazer o mesmo com você.

— Tommy — O caçula expressou surpresa ao ver que seu irmão levantou os óculos para chorar.

— Eu amo você, Yan. Para todo o sempre. Eu nunca me arrependi de nada que fiz por você, nem mesmo de ter saído daquela casa.

— Então você não se importa que eu seja trans?

— Para quê eu me importaria? Se não te faz mal, seja feliz.

— Desculpa se eu nunca soube retribuir o amor que sinto por você.

— E me desculpa por ter mostrado aquela foto — Pegou o retrato novamente e o rasgou em vários pedacinhos — Isso não importa mais!

— Eu também amo você, mais do qualquer outra pessoa.

— Até do Julian?

— Espera... — Fixou os olhos em Tommy novamente — Você sabe?

— Eu não nasci ontem, sempre notei algo entre vocês dois.

— Achei que sempre havia sido discreto.

— Eu te conheço... e via o jeito que olhava para ele.

— Que jeito? — Corou.

— Igual duas pessoas que se amam. E, além disso, eu vi vocês dois se beijando naquele dia, do lado de fora do circo.

— E você não liga para isso também, né?

— Não. Yan, eu me orgulho muito de ser o seu irmão mais velho.

Com o rosto molhado de tantas lágrimas, Tommy abria os braços lentamente, como se quisesse passar uma mensagem para Yan. Felizmente, o caçula percebeu e correu para um abraço.

Ambos estavam prestes a se esquecer daquela sensação. Como Tommy havia lembrado no desabafo para Astrid e Beth, não abraçava o próprio irmão desde a morte de Mr. Henderson.
As coisas não haviam mudado tanto como imaginava.

Deixou os óculos na cama para apertar seu irmão o mais forte que conseguia. Dois anos haviam se passado desde a morte de William, obviamente Yan havia crescido. Mas, mesmo assim, continuava menor que Tommy, só chegava na altura de seus ombros. Era um pouco estranho sentir que um corpo  pequeno estava entrelaçado em seus braços.

— Obrigado, Tommy.

— Já fazia dois anos que não te abraçava.

Yan abriu um sorriso largo.

— Acho que vou contar para os outros sobre isso ainda essa semana.

De repente, tudo o que havia acontecido nos últimos meses foi esquecido, e os dois passaram várias horas contando sobre coisas que estavam acontecendo.

Os filhos do Mr. HendersonOnde histórias criam vida. Descubra agora