Lembranças noturnas

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Milk acordou primeiro que todos os irmãos e pegou o diário de Mr. Henderson novamente. Releu a passagem de quando se conheceram.

Quem ele havia se tornado?

O próprio menino não conseguia responder. Só lembrava como foi no passado: o albino do orfanato, vivia sem o contato constante das outras crianças, sempre acompanhados dos funcionários do lugar.

Quando ia brincar no playground, alguns meninos sempre gritavam, chamando-o pelos mais diversos apelidos. Vampiro, Drácula e, o que ele gostou com o tempo, Milk.

Mas nenhum adulto se importava com os xingamentos que Ricky recebia quase diariamente. Foi então que decidiu tomar atitude: encarava as outras crianças, batia quando queria e as xingava de volta.

E os pais biológicos? Soube apenas da mãe, que também era albina, uma das mulheres mais lindas já vistas, de acordo com a dona do orfanato. Havia largado o pequeno Ricky com poucas horas de vida, em 18 de março de 1995.
Nada o impedia de sonhar com o retorno dela.

Quando estava entediado durante as tardes, desenhava histórias em quadrinhos de um super-herói albino, assim como ele, que enfrentava aventuras para reencontrar sua mãe biológica.

Tudo aquilo havia passado, Milk fechou os olhos e imaginou que, no fundo, o bullying teve um grande impacto em sua vida. Mas ele ainda se negava a demonstrar sua insegurança.
Era o garoto frágil que tornou-se estoico.

...

— Fiquei sabendo que Yan fez aniversário essa semana.

— Pois é, Mary, agora eu tenho 14 anos!

— Por isso, feliz alguns biscoitos que tanto gosta, aproveite!

— Nosso pai teve um ótimo gosto por ter namorado você.

— Ah, querido, muito obrigada!

— Astrid — Milk desceu as escadas chamando pela irmã — Nosso pai também escreveu sobre você, quer ler?

— Vocês encontraram o diário do William? — Questionou Mary.

— Como você sabia disso? — Rolf fez uma expressão supresa em seu rosto — Tipo, eu só descobri isso há alguns meses.

— Bem... ele me mostrou uma fez quando namorávamos.

— Hm — Levantou a sombrancelha — Então tudo bem...

— É claro que eu quero!

Domingo, 5 de outubro de 2003
Não preciso registrar há quanto tempo estou sem anotar algo aqui. Você já saberia, meu querido diário (só agora percebi que nunca usei essa frase clichê como introdução).
Adotei outra criança, uma menina chamada Astrid.
Ela é apenas alguns meses mais nova que Milk, nasceu em 3 de abril de 1995. No orfanato foi a que mais me chamou a atenção, aquele cabelo cheio de tranças e sua voz acolhedora também me deu a sensação que é o total oposto de Milk (me acostumei a chamá-lo assim).
É simpática e muito obediente. Não me deu tanto trabalho quanto o irmão (agora ele está um pouco melhor).
Fico feliz em saber que finalmente estou conseguindo realizar o sonho de ter várias crianças andando por essa casa, não me sinto tão solitário como antes.

— Já sabe o que podemos concluir nessa página, não é?

— Não entendi o que quer dizer.

— Eu dei bem menos trabalho para o papai, diferente de você!

— Ah, cala a boca! — Milk soltou uma gargalhada, deixando sua frase menos raivosa do que costuma ser.

— Bem, na ordem cronológica, Beth seria o assunto da próxima anotação.

— É verdade! Eu vou procurar.

Terça-feira, 16 de agosto de 2005.
Hoje faz exatamente 24 anos que minha Rosie morreu.
E atualmente, eu vejo como aos poucos estou realizando o sonho de ser um pai. Recentemente adotei outra criança, uma menina chamada Beth.
Ela era do mesmo orfanato onde Astrid viveu, tanto que nem sabia sobre a amizade das duas tinham. Minha filha sempre falava de uma amiga que sempre conversava por lá, mas nunca havia mencionado o nome dela (ou será que ela disse, mas eu me esqueci?).
Beth é gordinha com um cabelo castanho e, sinceramente, realmente parece comigo. Depois de um garoto albino e uma garota negra com tranças, finalmente encontrei alguém que as pessoas realmente poderiam pensar que é minha filha biológica. Ela tem 8 anos, sendo a mais nova da família até agora.
Ensinei um pouco da arte do circo para Milk e Astrid, eles ficaram tão entusiasmados! Mas deixarei para fazerem alguma apresentação por lá apenas quando tiverem 12 anos (ou mais velhos, dependendo do risco).
Com três crianças correndo pela casa, talvez esteja mais do que satisfeito com isso. Para falar a verdade, eu só adotaria mais um filho, nem mais um ou dois.
Apesar de hoje ser uma data horrível na minha lembrança, tudo está indo tão bem!

— “Eu só adotaria mais uma criança” — Beth, que se aproximou de Milk ao ouvir seu nome, comentou o trecho com grande ironia — Ele estava errado com essa afirmação.

— Talvez ele tenha adotado Tommy e Yan porque um deles pediu para ficarem juntos — Astrid sugeriu.

— É verdade...

— Ele não escreveu sobre mim em nenhuma dessas páginas? — Mary apontou para o diário.

— Vi você ser citada uma vez — Milk virava as folhas —, em um dia de festa realizada por Rosamund.

— Hmmm — Ela murmurou.

— A próxima página é sobre o Yan... e o Tommy. Alguém quer que eu leia?

— Ah, Milk, acho que poderíamos deixar para depois. Talvez Mary quer alguma conversa que não seja sobre diários.

— Yan, acho que está com medo do que ele escreveu.

— Eu? Não!

— Ele tem razão — A mulher sorriu — Enfim, vocês querem assistir algo na TV?

...

Sozinho, Yan estava em seu quarto. Já fazia um tempo que soube da palavra “trans”. Não conseguia tirar aquilo da cabeça, viu alguns documentários na televisão sobre o assunto, vendo aquelas pessoas que possuíam sentimentos e histórias tão parecidas com a dele.

Até quando ele tentaria guardar aquilo? Na verdade, guardava muitas coisas que só Tommy sabia.
Uma ideia surgiu em sua mente...
Tommy, precisava dele, das palavras ao olhar, do abraço ao sorriso. Estavam distantes devido a um ocorrido recente sobre a garota da foto, mas Yan não se importava mais com aquilo.

Ele estava correndo de volta para o irmão.

Os filhos do Mr. HendersonOnde histórias criam vida. Descubra agora