Encontro atrasado

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Milk e Yan trocaram ofensas por alguns dias, mas depois acabaram esquecendo do ocorrido. O quarto dos irmãos mais velhos estava com janelas fechadas, e Astrid tinha uma conversa séria:

— Você deveria parar de pressionar ele desse jeito.

— Tudo bem, já te ouvi falando sobre isso umas dez vezes.

— Mas é verdade, meu Deus, como pode ser tão ignorante?

— Eu não sou ignorante.

— Posso melhorar minhas palavras, na verdade, você fica facilmente bravo com as coisas.

— Tenho meus motivos para ser assim
.
— Não vai colocar a culpa nas crianças do seu orfanato de novo, né?

— Obviamente tiveram culpa, foram elas que me chamavam de “branquelo”, até irritava. Certamente não me decepcionei quando fiquei com fama de problemático lá.

A garota deu de ombros e se aproximou da porta.

— Olha — Suspirou — Tenha seus motivos, mas Yan parece ser alguém que também tem muitos traumas guardados na cabeça, e mesmo assim não os deixa interferir em sua personalidade.

— De onde tirou a ideia que ele tem traumas?

— Nunca percebeu? Não consigo nem contar nos dedos quantas noites acordei com ele gritando “Eu te odeio!” como se estivesse sonhando com algo ruim, sem contar outras coisas que me trazem dúvida, tipo aquelas marcas na perna direita.

— Tommy nunca disse nada sobre isso.

— E não é obrigado, pode ser algo sério.

Astrid saiu do quarto e decidiu assistir algo na TV. Enquanto isso, Beth fazia um esboço em uma tela para pintura.

— E aí, o que ele disse?

— Você sabe como Ricky é, teimoso e raivoso, que difícil conversar com alguém assim!

— Como sempre, né?

—  Inclusive, o que você está desenhando?

— É um rascunho para representar um jardim.

As duas pararam de conversar. No outro quarto, Yan estava sozinho pensando na carta de Julian, já faziam duas semanas daquele convite e ele sequer expressou se iria ou não encontrá-lo. Se bem que nem haviam marcado uma data...

Decidiu se vestir, as mesmas roupas que usou no dia que foi ao Clube dos Corações Solitários, e andaria até o tal parque em Cloud Land. Tommy não estava em casa por conta de um trabalho escolar, então não precisaria arranjar uma desculpa.

Eram três da tarde, um clima ensolarado dava mais vida ao bairro. Algumas pessoas passeavam com cachorros ou tomavam sorvete. Yan estava nervoso, mas confiante que encontraria o lugar e que Julian estaria lá. O garoto estava sentado em um banco verde, atrás de uma plantação de flores.

—  Desculpa ter demorado tanto para pensar em vir, simplesmente me esqueci da sua carta.

—  Sem problemas —  Ele sorriu —  E... você veio com roupas amarelas de novo.

—  Foi proposital.

—  Então... o que você quer saber?
Um silêncio constrangedor dominou os dois por não saberem como começar.

—  Aqueles que estavam com você eram seus irmãos?

—  Sim, são quatro, além de mim. O outro é um amigo do meu pai que também cuida e nós.

—  Então seu pai não estava no show naquele dia?

—  Bem... ele morreu.

—  D-desculpa, acho que fui desagradável nesse ponto.

—  Tudo bem, eu deveria ter dito sobre ele antes.

Yan se calou novamente enquanto observava crianças andando de bicicleta.

Mas depois decidiu falar de Mr. Henderson como forma de desabafar.

— O nome dele era William Henderson. Foi dono de um circo muito famoso lá em Sunset Street, onde ainda moramos. E meus irmãos e eu somos adotados.

—  Nossa... então você ficou em um orfanato?

—  Sim, eu e meu irmão biológico, o Tommy.

—  Deixe-me adivinhar, é aquele garoto alto e albino?

—  Felizmente não —  Ele riu —  Na verdade era o negro que usa óculos e tem cabelo crespo.

—  Nunca imaginaria, vocês nem se parecem.

—  Todo mundo fala isso.

—  Tá, mas e o garoto que falei, quem é?

—  Milk, mas seu verdadeiro nome é Ricky, só o chamamos assim em momentos de raiva, coisa bem frequente. O irmão mais velho e o mais estressadinho. —  Respirou fundo —  A menina negra com várias tranças é a Astrid, a outra que é gorda se chama Beth. E para finalizar, o Rolf é aquele que estava quieto na mesa na hora do show, ele tem sido nosso segundo pai desde então. Chega de falar de mim, né?

— Verdade! Então... com uns 10 anos comecei a gostar muito de música, talvez pelo fato do meu pai ter vários discos dos Beatles, Black Sabbath, Red Hot Chilli Peppers, várias bandas. Daí veio a ideia de fazer uma banda, isso se concretizou há alguns meses, quando minha mãe foi demitida do emprego, alguém precisava ganhar dinheiro enquanto isso.

—  Incrível, engraçado que sempre gostei de cantar.

—  Eu percebi, e faz isso muito bem —  Sorriu para Yan —  Foi então que juntei com James e Eddie e formamos a Spectrum, começamos a tocar uns covers e isso está dando muito certo.

—  Coincidência ou não, também me apresento, mas é no circo. Sou o palhaço e vou muito bem no malabarismo.

—  E se eu te falasse que tenho medo de palhaços?

—  Haha, alguns são meio assustadores mesmo, e nem estou falando do It a Coisa.

Os minutos se passavam tão imperceptíveis que nem percebiam. De repente pareciam não ter mais o que falar.

—  Você gosta de fazer isso?

—  Confesso que estou meio confuso sobre seguir uma carreira dessas ou não. Na última apresentação deixei cair umas bolinhas e o Milk ficou puto comigo. Disse que eu poderia abandonar e isso só aumentou a fúria dele.

— Que coisa horrível!

—  É...

— Ah, quase esqueci de te falar... estou compondo uma música, só tenho título dela: smithereens

— Uau! Já está pensando em lançar um material autoral?

— Se tudo der certo... sim!

— Ei, quer me ver em uma apresentação do circo?

— Mas eu...

— Poxa, vai ser legal!

Yan e Julian se olharam e apertaram a mão um do outro, como tivessem feito um acordo.

Sem que percebesse, o garoto já havia voltado para casa. Tommy voltou pouco tempo depois, pura sorte! Fingiu que nada havia acontecido.

E, depois daquele convite, era óbvio que tentaria não passar vergonha de novo.

Os filhos do Mr. HendersonOnde histórias criam vida. Descubra agora