Episódio 04 - Agda: Possessão I: Inconsequência

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Eu sempre fui uma amante da escuridão. Durante toda a minha existência eu me senti atraída pelos elementos magníficos que compunham os ciclos lunares, do brilho da lua à beleza das estrelas; a brisa fresca e a energia que despertava com a ausência do sol. Tudo me envolvia de tal forma que eu me sentia parte deles. Eu era uma filha da lua.

Eu me questionava os motivos pelos quais as pessoas estavam despertas durante os ciclos solares quando os lunares eram incomparavelmente melhores. A vida solar nunca me pareceu a melhor opção e, por tal razão, mesmo estando eu cedo em minhas eras, decidi por conta própria que iria trocar o sol pela lua. Eu sabia que aquilo não faria muito sentido aos olhos dos outros, mas havia sentido para mim no desejo de viver a minha própria verdade e isso me bastou. Meus pais não apenas resistiram àquela decisão como arbitrariamente me proibiram de seguir com o plano, despertando em mim a necessidade de contrariá-los para me autoafirmar. Eu não era boa em seguir regras arbitrárias.

— Seja obediente, Agda. Os que vieram antes sempre sabem mais!

Não sabiam. A proibição pela proibição nunca me fez sentido e eu estava certa do que queria, então, em desobediência às ordens que me foram dadas, decidi deixar a minha casa na calada da escuridão para me aventurar pelas ruas do vilarejo onde eu morava.

Na primeira vez que fiz aquilo eu não estava muito preparada. Estava cansada graças à minha rotina de treinamento, mas a mera ideia de sair de casa sob a luz do luar me manteve acordada. Eu me limitei a caminhar por algumas ruas nos arredores de casa e fiquei encantada ao perceber como a vida fluía mesmo após o sol se pôr. Havia uma única taverna nas proximidades que estava fora do meu campo de visão, o que não me impediu de escutar música sendo tocada e pessoas festejando. Me perguntei se elas estariam tão felizes quanto eu estava por experimentar o ciclo lunar ao meu modo. Eu vi fogo aceso nas casas enquanto a minha já estava imersa em escuridão. Meus pais não tardavam no seu descanso, de forma que toda a minha experiência com aquele período se limitava às paredes dos meus aposentos entediantes. Eu estava tão maravilhada por aquela breve aventura que não percebi quando dois guardas de patrulha se dirigiram a mim:

— Olá, como te chamam? — questionou o primeiro deles. Meus ossos tremeram; eu seria severamente punida se minha mãe descobrisse que eu desrespeitei suas ordens.

— Me... me chamam Agda — respondi hesitante. O segundo flexionou os joelhos e me encarou com os olhos semicerrados.

— Agda? Você é a filha do Ago? Você parece muito com ele.

Meu pai era o curandeiro das tropas que atuavam na região; era certo que aqueles soldados o conheciam. Como se aquilo não bastasse, nossos laços de sangue eram confirmados pela semelhança entre as sobrancelhas arqueadas sobre os olhos intensamente negros. O pânico tomou conta de mim e eu só consegui correr. Agradeci por todo o treino de preparação militar que meu pai insistia que eu fizesse desde cedo e, por sorte, as habilidades físicas eram o meu forte. Me virei e disparei em direção à minha casa; os soldados correram atrás de mim com suas botas barulhentas, gritando para que eu esperasse. Levei poucos instantes para alcançar a janela aberta pela qual saí, de modo que com um único salto entrei rapidamente por ela em um ato furtivo de invasão aos meus próprios aposentos. Eu até tentei fazer parecer que estive ali por todo o período, mas meu disfarce não se sustentou, pois os guardas avisaram aos meus pais que a filha deles estava vagando pelas ruas escuras e perigosas do vilarejo.

Eu sofri sanções por um bom tempo, um período em que só deixei a casa para treinar e era vigiada por eles o tempo todo. A situação levou a um desgaste tão grande que eu e minha mãe brigávamos sempre que estávamos juntas. Meu pai, por outro lado, tentava amenizar as discussões sendo a ponte entre nós duas. As coisas só mudaram algumas estações mais tarde quando minha mãe foi convencida a ceder um pouco. Eu ganhei permissão para ficar acordada durante o ciclo lunar, se firmasse com eles o acordo de não sair de casa após o pôr do sol e de não deixar que aquilo afetasse meu desempenho na preparação militar. Eu aceitei. O treinamento ocorria ao raiar do sol e eu realmente gostava de fazê-lo, o que foi o bastante para que mantivesse o ritmo. Ao voltar para casa eu descansava e despertava junto com a lua. Eu tentei algumas atividades internas e consegui me entreter no começo, porém, com o passar do tempo aquele acordo foi perdendo o sentido, me levando a tomar a decisão da qual eu mais me arrependi ao longo da vida. Eu me arriscaria novamente pela escuridão, só que daquela vez eu não queria correr o risco de ser pega e então, no auge da minha inconsequência, optei por me aventurar pelo vasto emaranhado de árvores e sistemas naturais que circundavam aquela região de Acalla: a Floresta da Fronteira.

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