Episódio 10 - Liera: Testemunhas

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— Liera, por favor! Deixe-nos cuidar disso! Não há razão para a regente assumir tamanho risco! — Cassius insistiu.

— Se há risco para a regente, há um risco ainda maior para aqueles jovens! Eles resistiram ao ataque a Astandor e agora receberão a atenção da rainha! — Cassius seguiu desaprovando minha escolha, balançando impetuosamente a cabeça. Salazar expressou em palavras sua concordância com o conselheiro:

— Podemos trazê-los até você, minha rainha. Desta forma, todos estarão protegidos dentro dos muros do palácio!

Eu levantei a voz para soar o mais firme possível:

— Nós estamos enfrentando uma crise sem precedentes que coloca em risco o pacto de paz com as demais nações. Estas crianças são os primeiros sobreviventes dos ataques, até então as únicas testemunhas conscientes! Eles são de um valor inestimável para a nação! Eu não vou permitir que sejam trazidos até o castelo por quem quer que seja! Sabemos bem que interferências podem ocorrer mesmo que eles sejam materializados aqui!

Invoquei Kassandra mentalmente. Ela surgiu de imediato em uma nuvem de névoa branca. Estendi a mão para minha conselheira e disse em alto e bom tom aos homens do recinto:

— Vocês já sabem para onde estou indo. Se estão verdadeiramente preocupados com a minha segurança, façam o que não fizeram em Verídia e reforcem as defesas do lugar! Aquele erro não foi só meu, e é bom que lembrem disso! — Kassandra nos levou ao Vilarejo da Fronteira.

Estar novamente no vilarejo me trouxe sensações ruins. Minha conselheira nos levou a uma base militar que ficava na parte oeste da vila, já nos perímetros da floresta, que emanava sua energia tão característica exatamente como eu me lembrava. Aquele ambiente me perturbou de tal maneira que precisei de um instante para me recompor.

— Você está bem? — questionou Kassandra. — Eu não quis dizer nada lá no castelo, mas tem certeza de que foi uma boa ideia ter vindo?

Seus questionamentos não me incomodaram como os de Cassius e Salazar, cujas presenças comecei a sentir nas imediações instantes após a minha chegada. Ela expressava preocupação legítima, sem questionar minha capacidade de liderança ou as minhas escolhas. Respondi a Kassandra com um aceno de cabeça, enquanto Salazar veio à minha procura.

— Onde estão? — questionei de maneira bastante diretiva ao ministro.

— Em uma cela, por aqui — o ministro se pôs a caminhar por um longo corredor. Eu e Kassandra o seguimos. — Ambos foram achados por um guarda de patrulha, caminhando sem rumo pela floresta. As atitudes suspeitas durante a abordagem geraram desconfiança, e por isso a cela. Você sabe, protocolos...

As pesadas portas de madeira estavam seladas por ritual. Dois rubis de selamento seriam suficientes para manter a porta intransponível; entretanto, ali foram usadas mais pedras do que eu pude contar. Aquelas crianças foram tratadas como uma ameaça de alta periculosidade pela equipe de defesa. Aquilo me incomodou profundamente.

— Removam as pedras! — ordenei. — Fiquem na porta e estejam alertas aos meus sinais.

Ao entrar na sala, notei o quanto as informações foram precisas: aquelas eram as primeiras testemunhas dos massacres a estarem em boas condições para o diálogo. Me deparei com duas crianças assustadas sentadas em uma espécie de estofado improvisado. Um tinha cabelos curtos e escuros; sua pele branca estava queimada, indicando que ele passou por um longo período de exposição ao sol. A menina parecia um pouco mais avançada em eras; sua pele negra também explicitava sinais de queimadura nas áreas onde seu penteado curto e volumoso não cobria as laterais de seu rosto. Os lábios de ambos estavam secos e seus olhares profundamente marcados pela dor.

— Meus jovens, eu sinto muito por tudo o que vocês passaram para chegar até aqui. Vocês têm fome ou sede?

— Eu preciso de água... — respondeu a menina.

— KASSANDRA! — gritei. Minha conselheira abriu a porta sem hesitar. — Providencie água e comida para essas crianças. Certifique-se de que os mantimentos estejam seguros e próprios para o consumo, por favor — Kassandra concordou e fechou a porta. Sobre os tecidos alvos das minhas próprias vestimentas, eu me ajoelhei e, uma vez estabelecido contato visual, prossegui: — Peço desculpas por vocês terem sido tratados assim. Esses soldados precisam aprender a cuidar do povo a quem eles servem. Eu sou...

— Liera! — me interrompeu a menina. — Fomos avisados de que você viria nos interrogar.

— Estou aqui para ouvir vocês. Interrogar é um termo pesado para a ocasião — completei com um sorriso. — Como os chamam?

— Me chamam Tagi, a ele chamamos Dranô. Estamos viajando juntos desde o acontecido em Astandor.

— Olá, Dranô — eu disse, mantendo o sorriso. Ele estava sério e evitou me olhar nos olhos.

— Ele não fala. Talvez a comunicação seja difícil.

Não ali, não comigo. Olhei para ele e, com a voz mais serena possível, expliquei:

— Sabe, Dranô, eu sou uma mentalista. Nós conseguimos nos comunicar com as pessoas muito além das palavras. Eu posso me comunicar mentalmente com você, posso ouvir seus pensamentos para que você se expresse como desejar. Mas eu sei que isso pode ser um pouco invasivo, e só vou proceder com o seu consentimento. O que acha?

Ele não hesitou em negar minha proposta e seguiu sem me olhar.

— Eu respeito a sua decisão. Estou aqui para dizer que a Grande Nação de Acalla está em dívida com vocês e com todos os cidadãos que foram vítimas das recentes tragédias. Nós falhamos em protegê-los e vamos reparar isso. Para evitar que a tragédia se repita, eu preciso ouvir de vocês como tudo aconteceu, se estiverem dispostos a falar sobre isso.

Dranô fechou os olhos e demonstrou um descontentamento profundo com aquela situação. Ele virou o rosto em uma vã tentativa de ocultar as lágrimas que começavam a brotar.

— Eu posso falar... — Tagi tomou a palavra, mas foi interrompida por um guarda que invadiu a sala em um ato impetuoso. O soldado estava ofegante quando anunciou:

— Senhora, estamos sob ataque!

***

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