— Então esse é o fim?
— Será se assim você definir este momento. Eu prefiro crer que legados não morrem, você será eternizada e sua memória viverá para sempre! Está pronta?
As lágrimas anteciparam minha resposta.
— Eu... tenho tantos sentimentos, tanto a ser feito! Isso não pode acabar assim, a minha história, A NOSSA HISTÓRIA! Eu preciso de mais tempo! Por favor, NOS CONCEDA MAIS TEMPO!
— Minha serva, do que isso te valeria? O tempo não é um limite para a existência dos seres que sabem bem como usá-lo. Por acaso faltou tempo às árvores das florestas ou às bestas dos campos? Creia em mim quando digo que aos da tua raça não faltou tempo algum. Não, aos humanos faltou humanidade!
Eu refleti brevemente sobre aquelas palavras enquanto as absorvia.
— Eu espero ter expressado a minha humanidade no pouco tempo em que passei desperta, queria ter escolhido fazer as coisas de maneira diferente... — A dor profunda causada por aquele diálogo me impediu de continuar.
— Mesmo diante da tristeza, não permita que o passado lhe cause dor. Sendo quem sou, vejo redenção em teu coração e a tua mente está limpa. Não cabe pensar em tuas escolhas como assertivas ou equivocadas, elas foram apenas isso: escolhas. Decisões tomadas a partir do julgamento possível. Nada na tua história tornará o teu fim menos digno. Lembre-se de quem você é!
Ela tinha razão, não havia mais nada a ser feito. Me permiti um último suspiro e então anunciei:
— Estou pronta.
Sempre me disseram que não deixamos este mundo sem enfrentar as consequências das nossas ações. Essa ideia acompanhou a humanidade em sua existência e todos nos tornamos vítimas dessa lei de alguma forma, fosse através de pequenas perdas ao longo da vida ou com a extinção da vida em si, quando o preço a ser cobrado pelos nossos atos se mostrava alto demais.
O que mais me surpreendeu foi a observação de que, mesmo diante da certeza de que tudo seria cobrado, nós, humanos, nos mostramos incapazes de fazer escolhas que não nos causassem prejuízos. Depois de muito pensar no assunto, cheguei à conclusão de que isso ocorria porque a natureza humana é destrutiva. Nós éramos seres destrutivos, mesmo mantendo uma relação muito íntima com o sagrado, com as divindades que teriam poder para nos abençoar e autoridade para punir as nossas ações. Sim, nós tínhamos provas irrefutáveis da existência do sagrado e essa relação se originou nos tempos imemoriais.
Contam as lendas que a Terra era um lugar hostil, um plano de disputa entre poderosas entidades que buscavam a expansão de seus poderes. As consequências de tais disputas eram sentidas de várias formas: das pragas e eventos cataclísmicos aos seres violentos que por lá caminhavam; da menor das criaturas fantásticas aos grandes colossos que lutaram em nome das divindades que os enviaram. Os humanos e os demais seres naturais daquele plano eram vulneráveis à guerra; espécies e sociedades inteiras foram dizimadas sem qualquer chance de defesa ante o caos.
A humanidade, afligida pela guerra que a levaria à extinção, entendeu que o fim iminente chegaria cedo ou tarde. Foi quando grupos de humanos decidiram reagir, levantando-se contra o poder dos seres soberanos. A certeza da morte lhes deu propósito; aguardar o destino de forma passiva não daria às futuras gerações a mínima possibilidade de conhecer uma realidade diferente. Mesmo em desvantagem, vários guerreiros lutaram com as armas das quais dispunham e muitos se sacrificaram em prol daqueles que estavam à mercê da guerra divina.
Mas nem todas as entidades disputavam poder ao custo de vidas terrenas. Em um certo ponto da história, duas destas divindades surgiram nos céus durante o ciclo da lua. Elas brilhavam como as auroras do Norte e sua potência foi sentida por aqueles que presenciaram a visão. Os guerreiros dariam suas vidas em proteção aos seus semelhantes, mas se detiveram ao ouvirem os poderosos seres, tal qual o brado de um trovão, transmitirem sua mensagem de solidariedade à causa humana. Elas se posicionaram contra a forma como a vida na Terra estava sendo dizimada e intervieram, abençoando com seus poderes dois dos mais nobres homens que ali encontraram.
Um passou a portar o Dom da Cura e sobre esta magia tornou-se responsável na Terra. A cura lhe foi concedida para que sarasse a mais simples das feridas ou para trazer do mundo dos mortos todos aqueles que necessitassem, uma vez mais, do sopro de vida em seus corpos. Ao outro foi concedido o domínio sobre as Vertentes do Futuro para que pudesse antever os ataques e prevenir que os humanos cruzassem com a fúria das demais entidades. A eles, e tão somente a eles, foi dado o dom da Palavra de Ordem, ou o dom de abençoarem outros humanos com seus poderes recém-adquiridos. Ali nasceram os primeiros anciões, abençoados diretamente pelas entidades da cura e do tempo e difusores do seu poder sobre a Terra.
Aqueles eventos mudaram os rumos da história. Antes fadada ao fim, a humanidade passou a dispor de uma vantagem sem precedentes na existência de todos os seres viventes. Os guerreiros portadores da Palavra de Ordem propagaram os poderes da cura e do tempo sobre a Terra. As boas novas sobre os seres celestiais que se compadeceram dos humanos se espalharam tão rápido quanto suas magias. Os anciões se tornaram heróis e aquele foi o berço da fé e da devoção às divindades protetoras. Com o passar das eras, outras entidades se voltaram aos humanos e cederam seus poderes, elegendo novos anciões.
A equiparação de forças levou ao equilíbrio e os humanos já não precisavam defender-se dos seres extraordinários, possibilitando assim a expansão da raça. Grupos se uniram conforme suas próprias culturas sob a regência dos anciões, dando origem aos catorze clãs que representavam cada uma das classes mágicas existentes. Entretanto, a ausência de um inimigo em comum e as diversas divergências ideológicas levaram a crescentes tensões; a guerra contra as entidades mudou de face, voltando-se contra a própria humanidade. Atos hediondos foram cometidos na luta por expansão territorial e poder. O anseio pelo acúmulo levou à dominação e ao extermínio de grupos e comunidades mais vulneráveis. A crise se acentuou quando um evento, em especial, agravou a digladiação entre os clãs: a descoberta de que o assassinato de um ancião concederia ao seu algoz a autoridade sobre o poder que ele representava.
Eu tentei achar uma razão para as coisas serem como elas eram. Eu demorei a entender os motivos das práticas humanas que se utilizavam da fé para deixar aflorar o pior de seus aspectos, ou até mesmo a permissividade das entidades ante o uso das bênçãos concedidas para a aniquilação dos homens contra seus semelhantes. Agora, entre devaneios e reflexões, vejo que a destruição se perpetuou tal qual a espécie humana devido à nossa incapacidade de romper com seu ciclo. Mesmo sendo a humanidade uma filha da destruição, entendo, ainda que de maneira tardia, que utilizá-la como ferramenta para moldar o mundo foi também uma opção.
Se estas memórias chegarem até alguém capaz de decifrá-las, você observará que, durante a nossa existência, todos fizemos escolhas destrutivas e ninguém esteve livre de ser julgado conforme os próprios atos. Ninguém.
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Acalla
FantasyTrês nações disputam poder em um mundo mágico tomado por guerras políticas. Quando vê sua nação ameaçada, a rainha de Acalla, Liera, se encontra em um impasse entre cumprir com as imposições que limitam sua capacidade de liderança, ou assumir as con...