VI. Descanso

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Era o trigésimo segundo dia do mês chamado Meiar, sendo o único a ter essa peculiaridade. Demais meses tinham ou trinta ou trinta e um dias, não menos que isso. Por sorte, Aquilies recebeu seu primeiro trabalho neste mês, pois, obrigatoriamente, em todos os Nove Reinos, os dois últimos dias deste mês eram tratados como um feriado universal.

Infelizmente, Aquilies passou o dia de ontem apenas em repouso em casa devido ao esgotamento de seus músculos. Sua mãe, por ser enfermeira, conseguiu cuidá-lo com proficiência, utilizando de massagens e compressas, e dando bebidas quentes. E conversaram acerca da doação anônima por longas horas.

Aquilies achou melhor pensar mais neles próprios, somente mãe e filho, enquanto que sua mãe preferiu tentar melhorar a situação generalizada que seu povo sofria, mas eram muitos para ajudar. A antiga aldeia em que viviam era uma das principais localidades estratégicas do emergente levante de Ragnor, pois tinha a melhor rota, privilegiada com o auxílio da corrente marítima para se chegar no continente.

Ele cresceu ouvindo as glórias do homem que unificou as tribos selvagens, mas nunca o viu de fato. Contudo, tinha ciência que seu objetivo era apenas cumprir alguma promessa, não sabia o que era, porém, diversas árvores caíram para dar lugar a navios cada vez maiores. Apesar de menos numerosos, um guerreiro insular equivalia a cinco combatentes de infantaria ou um cavaleiro de uma Casa Menor.

Das mais de mil pessoas, apenas menos da metade conseguiu fugir a salvo do ataque repentino dos cinco cavaleiros sombrios. Eram seis deles, mas Aquilies testemunhou o feito lendário de seu pai, que derrotou um desses cavaleiros ao desferir um poderoso golpe duplo de seu par de machados contra o pescoço do monstruoso cavalo e, em seguida, decapitar o seu montador. Seu pai morreu logo depois disso, mas morreu lutando, assim, sendo digno de receber a honra do pós-vida. Todavia, Aquilies era cético até com a sua própria cultura.

No momento, Aquilies encontrava-se dentro de casa, deitado em sua cama e olhando distante para o teto, que havia infiltração da chuva acumulada do mês inteiro. Por sinal, esse dia não foi diferente, a chuva caía também. O vidro embaçado e os pingos de chuva que batiam ao chão colaboraram nos devaneios de Aquilies, que se sentia amuado depois da discussão de ontem com sua mãe sobre o dinheiro.

Entretanto, pôde sentir o cheiro de um almoço delicioso à espera de ser devorado vindo da cozinha. Sabia discernir de que se tratava de um prato típico de sua terra natal. Não comiam esse prato desde que se refugiaram na Baía do Horizonte, a cidade portuária. Mesmo sendo uma das principais rotas do comércio de peixes, sua mãe não tinha o privilégio de comprar mais de uma unidade de arenque, que era necessário.

Enquanto o almoço não ficava pronto, Aquilies virou para o lado e ficou na beira da cama, observando em direção à janela. Imaginou o que poderia estar acontecendo lá fora, mas não veio nada em mente senão poucas pessoas passeando com seus guarda-chuvas. Gostava da chuva, mas não podia fazer nada no momento por estar em repouso, e não queria magoar mais ainda sua mãe caso contrariasse uma ordem dela.

O frio invadiu a casa mal feita, e Aquilies apenas teve que se afundar nas cobertas da cama, que foram confeccionadas com a pelagem de um urso-atroz. O cobertor pertenceu ao seu pai e foi usado por ele como uma mera capa de frio. Não bastando isso, a infiltração começou a gotejar sobre o pelo marrom do manto de cama.

Aquilies não deu importância porque se acostumou com esse problema. Ficou enrolado no cobertor, imaginando um último abraço de despedida de seu pai. Quase caiu no sono de tão confortável e quente estava. Num luto tardio, o menino permitiu ser atingido por todas as emoções que havia resguardado. Por que teve que ser logo você quando a gente mais precisou?

Ele ainda lembrava da difícil viagem que tiveram para escapar do alcance daqueles cavaleiros, que galopavam até sobre as águas do Mar Frio. Sua mãe ficou com ele nos porões da embarcação, e só podia ouvir o desespero dos demais tripulantes ao descobrirem a surreal dádiva que os estimados inimigos possuíam, enquanto os navios enfrentavam uma tempestade. Desde aquele dia, Aquilies passou a odiar viagens de barco e, em geral, qualquer assunto relacionado aos mares.

O Prelúdio da JornadaOnde histórias criam vida. Descubra agora