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Mel
O dia começou diferente, ao invés do alarme martelando minha cabeça, acordei com socos na porta

- Quem é? - gritei coçando os olhos e bocejando

- Malu boba - rapidamente abri e nos abraçamos

Malu foi a primeira pessoa com quem tive contato quando cheguei na favela. Lembro de chegar e ver uma menina loirinha toda suja de lama sentada na calçada tomando picolé, sentei ao seu lado. Desde então nos tornamos melhores amigas, a única em quem confio de olhos fechados e a única por quem daria minha vida
Malu faz direito, tem o sonho de se tornar advogada de defesa. Acredito que todos que residem neste lugar tem sede de justiça de alguma forma, a realidade é dura, é nós por nós

- Eu fiz besteira - fechei a porta a encarando

- Você sempre faz - ela revirou os olhos e se jogou em meu sofá

- Dessa vez é sério - sentei ao seu lado - da última vez que a polícia bateu aqui, eles disseram que essa era a última vez que meu pai poderia ser solto por fiança, pensei que se pagasse ele pararia, afinal quem quer passar meses em cana por beber

- Melissa, o que foi que você fez - ela mudou o tom da voz e passou a mão pela testa nervosa

- Eu subi e pedi dinheiro - disse rapidamente e fechei os olhos, esperando o sermão

- O que - ela berrou - no que tava pensando

- Eu não sei, eu não sei

- E cadê o seu pai? - ela disse em partes, já esperava o que eu ia dizer

- Tá lá de novo, eu paguei e em menos de uma semana ele agrediu um pm - suspirei - de novo

- Melissa - ela afundou o rosto nos braços - e agora

- Um molequinho veio cobrar - ela arregalou os olhos - eu tinha um pouco menos da metade, ele entendeu, me deus mais uma semana

- Quanto?

- Três mil - ela levou as mãos a boca

- Tá - ela segurou minhas mãos - a gente consegue, eu tenho um dinheiro guardado da formatura, eu peço o salário do estágio adiantado

- Malu - aumentei o tom - não se preocupa, eu vou dar um jeito

- Como não se preocupa

- Eu separei umas coisas pra penhorar - peguei uma caixinha na bancada da cozinha - vê se chega em algum lugar

- Só com essas alianças aqui chega - ela mordia a ponta igual aos atletas em época de olimpíadas

- No fim aquele traste serviu pra alguma coisa - rimos juntas

- Esses colares devem valer também, eu chuto uns mil e pouco - ela franzia os olhos tentando calcular

- Vou procurar uma casa de penhores, tentar resolver isso o quanto antes

- Isso, tenho estágio mas amanhã de manhã passo aqui - ela foi até a porta - vai dar tudo certo, te amo muito

- Te amo

Organizei tudo de volta na caixinha, dei comida aos peixes e troquei de roupa. Já estava escuro, pus um moletom e capuz
Sai na rua e de longe avistei Cabeleira, com um fuzil enorme e um rádio nas mãos, nem parecia o menino de cinco anos atrás, que ainda brincava de carro e jogava futebol na rua

- Mel - ele veio até mim - quanto tempo

- É, faz um tempo

- Que barra com seu pai - ele passou a mão na nuca - conseguiu o dinheiro?

- Não todo, to indo penhorar umas coisas - balancei a caixinha em seu rosto - conhece alguma casa de penhores por aqui?

- Nem, mas alguém conhece - ele soltou uma risadinha

- O Portuga - ele levou o rádio a boca

- Fala

- Qual a casa de penhores mais perto do 06?

- Tem o Dom, na esquina do 400 - ele apertou um botão e pôs de volta na cintura

- Consegue ir até lá?

- Consigo sim, obrigada

- Nada Mel, fica com Deus

Andei um pouco, moro no 330, ao cruzar pra 400, lá estava. Entrei e um sino tocou, fui até a bancada, um velho me olhou de cima a baixo e cuspiu o palito

- Tudo bem? Vim penhorar umas joias - me apoiei na bancada e tirei o capuz

- Dom - ele gritou - um segundo viu dona, jóia é com ele

- To aqui - um menino de uns vinte e tantos apareceu, tatuado e cheio de ouro no pescoço e nos dedos - opa, sou o Dom

- Melissa

- E como eu posso te ajudar? - ele esfregou as mãos

- Vim penhorar umas joias - as coloquei em cima da mesa, ele logo começou a examinar com uma espécie de lente

- Consigo 1500 pá tu - ele quebrou o silêncio

- Beleza - suspirei cabisbaixa

- O pai vai passar meu café lá em cima faz o favor - enquanto o pai dele subia, o mesmo não tirava os olhos de mim - fala comigo

- Como?

- Por que tá penhorando essas coisas?

- To devendo depois de tirar meu pai da cadeia

- Caralho, que pika em - ele passou a mão no cabelo - faço por 2100, tu é bonita demais pá tá com dívida

- Ah - sorri de canto - de qualquer forma combinado, muito obrigada - apertamos as mãos e ele recolheu as coisas da bancada

- Não tem que agradecer não morena - ele foi nos fundos e voltou com um bolo de dinheiro - que Deus te abençoe

- Igualmente - acenei e fui embora com um sorriso no rosto

AMANTESOnde histórias criam vida. Descubra agora