Sempre vigilante e imponente, soberana às demais, inabalável no horizonte, guardadora da desolação, ou apenas, Meah'Gōe
Aquela noite foi bem mais silenciosa do que as demais, e o clima trazia um calor aconchegante à pele. A mudança no ambiente era cada vez mais perceptível, com diversas depressões enquanto subiam por uma elevação rochosa por entre o vale.
Quipor havia prendido a pele do pequeno javali abatido em sua mochila, de forma com que o pequenino rolo ficasse exposto. Os cantis de água de ambos já estavam próximos do fim, por mais que o povo Arium, os Aríni, necessitassem de menos água do que o comum.
— No fim, você realmente cumpriu o seu papel. — Stella caminhava um pouco atrás de Quípor, observando as estrelas.
Quipo olhou de canto, sorrindo.
— Como assim? O que quer dizer?
— Seu papel como guardião, não lembra? — Stella respondeu.
— Não fiz muita coisa. — O rosto do rapaz se tornava mais rubro aos poucos — Ou perdi alguma coisa?
Os punhos cerrados de Stella esquentavam as alças da mochila. — Se não estivesse lá, eu teria morrido como presa. Foi uma burrice minha.
— No fim, você teve que me proteger. — Havia um incomodo na voz dele.
— Eu estava com a sua gímni, lembra?
— Mesmo assim. — As palavras de Quipor foram secas, quase como se para dar um basta àquele assunto. — Um Kiin não fraqueja ou recua numa caçada, nunca.
Stella preferiu não insistir, sabia como algumas tradições eram importantes para Quipor, estava ali fortemente motivado por uma.
Era estranho para Stella imaginar como alguém se encaixava tão bem em um lugar, seguindo suas tradições e leis, contribuindo ativamente e sendo parte de uma comunidade, mas para ela era diferente, mesmo com suas raízes cultivadas em Arium, não havia lugar para ela ali. Sua mãe era sim de Arium, uma artífice entre os Aríni, amada por alguns e rejeitada por outros. Seu pai era uma incógnita, pelo menos para a maioria, mas Stella soube desde sempre, carregando na lembrança a frase que sua progenitora sussurrava.
"Sempre haverá sede insaciável pelo saber, pelo controle, pelo poder, ainda assim, há fatos imutáveis, superiores a todas as tentativas dos mortais. Os filhos da primeira chama, eles sim são capazes de moldar sua vontade sobre as demais.
Aceita tua herança de sangue e toma para ti o que é de direito, mesmo que arda a centelha de um exercício."
A cultura dos Aríni sempre foi bela para Stella, mas a garota enxergava de forma diferente, como a maioria das coisas. Era como se todo o misticismo da centelha se tornasse apenas mais um detalhe, e estes pensamentos, mesmo que inocentes, a afastavam do que aquele povo realmente buscava nela; uma guia.
Quípor estava ali não só pela amizade entre os dois, mas como uma forma de se provar um Kiin, guardião, patrono da vila, um tipo de comandante entre os Aríni. Stella não se incomodava, apenas sentia que poderia ajudar o amigo ao aceitar sua companhia, além de se sentir mais à vontade com um rosto familiar por perto.
— Acho que logo chegaremos à estrada, não falta muito. — Quípor caminhava com o mapa em mãos, intercalando o olhar entre o pergaminho e a direção para onde andava.
Stella respirou fundo, com os olhos fechados, e então fungou algumas vezes antes de falar com exímia convicção — Pessoas.
Quípor parou por um segundo, observando a amiga. Havia algo diferente desde que havia queimado aquele grupo de javalis, mas não sabia dizer exatamente o que.
— Como tem tanta certeza?
— O cheiro... — Stella ainda estava concentrada em seus próprios sentidos, sequer percebendo a estranheza do que acontecia.
De fato, eram pessoas, e muitas, indo e vindo em grupos ou sozinhas pela rampa natural que se formava ao pé da grande montanha. As pessoas constantemente abriam caminho para os cavalos e carroças que passavam, e carregando suas mochilas ou trouxas de pano, fora o burburinho que as conversas paralelas causavam.
Chegamos. Os dois pensaram, e foi como se um cansaço acumulado se apoiasse em suas costas, talvez pelo fato de terem relaxado os músculos em alívio, apesar do caminho que teriam de subir.
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Coroa Sangrenta - Aço e Fogo
FantasyPara alguns, não há nada mais angustiante do que mergulhar em águas desconhecidas, ainda assim, existem aqueles que, talvez por ignorância, abraçam a maré sem hesitar. Stella, uma órfã teimosa e alheia aos problemas do mundo, embarca em uma jornada...