A centelha permeia tudo, mantém o mundo firme e manifesta aos mais puros anseios da alma, fonte de vida e morte, a primeira filha de Leam
As faíscas surgiam em sintonia com os batimentos cardíacos, não demorando para que o ar se tornasse mais abafado e o mormaço se espalhasse por uma grande área. As faíscas se tornaram chamas fortes, prontas para consumir vorazmente o que estivesse ao seu alcance.
Quípor era forçado a fechar os olhos, incomodados pela luz repentina da explosão, e sentia como se estivesse dentro de uma fornalha, cada vez mais quente. Os javalis eram engolfados pela onda escaldante, e os grunhidos desesperados logo davam lugar a pequenos gemidos de agonia, enquanto seus pelos espessos ardiam em chamas e sua carne fosse consumida até que somente restasse o crepitar do fogo e o cheiro incômodo de queimado.
Quípor estava no chão, abismado com o que acabara de presenciar, mesmo com o pouco que conseguiu ver. Por pouco não foi engolido pelas chamas.
Stella por sua vez, observava atônita, exausta e imensamente feliz, apesar do completo fracasso em sua caçada. Sentia seus músculos rígidos, o coração quase saltava para fora do peito, conseguia ouvir o rio ao longe, o bater de asas de uma borboleta em algum lugar do vale, a respiração acelerada de Quípor e o último suspiro de um dos animais carbonizados, uma sensação estranhamente majestosa.
O rapaz arrumava forças para se levantar, mantendo o olhar vidrado na amiga, envolta em chamas como se sua pele fosse a própria lenha. Uma forja viva. Quípor permaneceu inerte, observou Stella caminhar até um ponto aparentemente aleatório, repleto de marcas de investidas e brasa, deixando para trás as queimadas de suas pegadas no solo, e se agachar por um tempo, jogando um pouco de terra para o lado com as mãos e "resgatando" o que Quípor reconheceu de imediato. Minha gímni, ele pensou.
— Pensou em me avisar antes de fazer algo arriscado assim? — Não sabia ao certo como agir, a presença de Stella naquele momento causava certo calafrio, mas no fundo ainda acreditava que se tratava da mesma menina teimosa de sempre. — Principalmente se fosse arriscar minha gímni.
Quase impassível, Stella voltou seu olhar ao amigo. — Não foi tão ruim. —As chamas se extinguiam aos poucos, revelando a Quípor uma jovem cansada demais para debates.
O rapaz se apressou em levantar e, ainda com certo receio, foi em direção a amiga, tentando não evidenciar sua irritação. Stella devolveu a adaga com um sorriso.
— Desculpe, acabei não deixando nenhum. — Stella olhava para as pilhas de carne queimada no chão.
É por isso que está se desculpando por isso? Quípor parecia desgostoso com as desculpas, afinal, o problema não era o fracasso com a caça. — Sabe o quanto essa gínmi é importante pra mim... — Quípor conflitava em sua mente, num misto de raiva e alívio, feliz por Stella ter recuperado suas chamas, e principalmente por ter salvado sua vida. — Poderia ser pior. — Com o canto do olho ele percebeu uma criatura, encolhida, longe de toda a confusão da batalha, deixando apenas um sutil rastro de sangue na grama. — Pegou um.
Não era nem de longe tão robusto quanto os que haviam sido queimados por Stella, era pouco mais que um filhote, ainda assim quase do tamanho de um javali adulto das terras do norte.
Quípor foi quem carregou o animal sobre as costas, lutando para não se desequilibrar enquanto observava atentamente o terreno desnivelado, até que chegassem à sombra da árvore onde haviam passado a noite. O Sol dava uma breve trégua e o calor se amenizava um pouco mais. Quípor colocava o animal no chão, buscando rapidamente em sua mochila um pedaço longo de tecido para repousar o javali. A gínmi era ainda mais esbranquiçada quando exposta diretamente ao Sol, e sua lâmina logo seguia sutilmente sob a pele do animal enquanto Quípor entoava um cântico, zeloso em cada palavra.
"Éssfi Liatosiíl c'mi batún...
Siíl éssfi, c'mi lit." ¹
O cântico era repetido algumas vezes mais, até que todo o couro fosse removido, por meio de muita paciência e habilidade. Stella observava calada, sentada com as costas apoiadas na árvore que projetava sua sombra sobre eles. Ao final, haviam perdido quase um dia inteiro, mas pelo menos teriam com o que se alimentar direito antes de seguir viagem, aproveitando da fogueira já preparada para assar a carne antes que estragasse.
Enquanto comiam, Stella observou a feição de incômodo no rosto do amigo, mais quieto que o normal.
— Olha, eu não fiz por mal, só queria ser mais útil... — Stella mirava a fogueira crepitante, acesa novamente com facilidade, graças ao retorno de suas chamas.
— Acho que só não estou acostumado a dividir ela... é o que me faz sentir próximo a minha família. — Quípor tentava colocar um tom mais ameno em sua voz, forçando um sorriso de canto. — Eu deveria confiar mais em você.
— Fala sério, nem eu confiaria em mim. — Stella também sorria, porém havia uma satisfação real, se lembrando de que estava completa novamente.
Quípor observava a amiga, pensando bem em suas palavras enquanto mordiscava mais um pedaço do javali. Desde que podia lembrar, Stella era o que ele nunca seria, a filha perfeita que seu pai sempre quis, era uma exímia caçadora e cabeça dura, características mais marcantes dos Sûtal.
— Você é mais do que pensa. — Quípor guardava aqueles pensamentos para si, como costumava fazer, tentando trazer um lado otimista para a conversa. — Mas seu estilo é mais "explosivo".
Stella abriu um sorriso largo, tomada pelo ânimo de reaver suas habilidades e extasiada com a lembrança das suas chamas.
— Acho que podemos seguir viagem. — Quípor apontava para o Sol, se escondendo atrás de um conjunto de montanhas ao longe. — Viajar à noite é sempre melhor, como os anciãos costumam dizer.
¹ "Poderoso soberano do paraíso, guia esta gínmi através da carne."
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Coroa Sangrenta - Aço e Fogo
FanteziePara alguns, não há nada mais angustiante do que mergulhar em águas desconhecidas, ainda assim, existem aqueles que, talvez por ignorância, abraçam a maré sem hesitar. Stella, uma órfã teimosa e alheia aos problemas do mundo, embarca em uma jornada...