Um

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Em seu sonho Stella afunda num lago tão límpido e profundo, que as estrelas parecem ser presas em suas águas. As bolhas na água aos poucos ofuscam sua visão, e os pulmões clamam por oxigênio, seus gritos são abafados e as lágrimas ardem em seus olhos antes de se perderem nas águas, por fim, não resta nada além da inércia enquanto a escuridão a consome.


Acordada forçadamente pelo som repentino de vozes sob a tempestade, Stella suava como se tivesse corrido por horas, apertava ofegante o amontoado de tecidos que a cobriam contra o rosto, segurando um grito de frustração em meio ao balanço das ondas. Ainda era noite, a luz da Lua entrava como um feixe pelas cortinas.

Seus olhos eram como duas âmbares, correndo pela bagunça do lugar: papéis espalhados sobre o chão, rabiscados com anotações ilegíveis para a maioria, ferramentas como compasso e bússola jogados sobre a pequena escrivaninha, e uma manta de pele enorme respirando sutilmente em meio àquela bagunça. Quípor dormia tranquilamente apesar das circunstâncias, e aquilo era algo fora da compreensão de Stella.

Sua mochila não estava longe, e só precisou se esticar um pouco para puxá-la, com o máximo esforço para que a cama velha não rangesse. Retirou um casaco surrado e logo o jogo sobre seus ombros, apertando contra seu corpo enquanto se levantava.

Observando pela pequena brecha da cortina, soube que não havia dormido por muito tempo, chutou duas ou três horas, sentia incômodo constante com o balanço da maré, e a chuva não ajudava nem um pouco, sem falar das vozes da tripulação no convés. Estava usando as mesmas vestes desde o embarque, claramente havia pegado no sono enquanto fantasiava sobre a viagem, mas a ânsia por terra firme ainda a deixava inquieta.

Ao ser empurrada a porta rangia baixo, tão insignificante em relação a chuva que Stella sequer se preocupou, e logo já estava se apoiando pelas paredes dos corredores, se esforçando para lembrar o caminho certo até o convés. Não houve demora, bastou seguir o som da chuva, pelo menos foi assim que ela encontrou as escadas, encharcadas pelas gotas que caíam forte em cada degrau. O ar a partir dali era mais frio, mais do que estava acostumada, mas trazia uma sensação de liberdade. Conforme subia se via obrigada a escorar nas paredes para compensar a falta de equilíbrio, aos poucos deixando a chuva cair sobre si.

Uma fina cortina de vapor subia ao tocar a pele negra de Stella, agora de olhos fechados contra a ventania, o pingente dourado que dançava entre seus dedos contrastava com os cachos rubros dançantes no ar, era quase como se sentisse seu coração pulsar através do pequeno objeto, preso a uma fina corrente que abraçava o pescoço da jovem.

— Está planejando ser levada pelo vento? — A voz era jovem e grave, vinda do pé das escadas.

A frase a arrancou de seus pensamentos e Stella se virou tão repentinamente, que por pouco não escorregou nos degraus. A chuva atingia seu corpo como pequenas flechas gélidas enquanto o vapor aos poucos sumia, seu semblante envergonhado tirava uma gargalhada do rapaz.

— O que foi?! — A garota descia os degraus, apertando forte o casaco sobre si. — Você não estava dormindo?

— Eu poderia perguntar o mesmo para você — Quípor abria espaço para que Stella passasse, segurando mais um riso. — Sorte que eu estou aqui para cuidar de você. — Ele continuava, num tom de piada que quase arrancava um sorriso da jovem.

— É mesmo? — Stella batia o casaco contra o ar, espirrando parte da água contra o rapaz. — Então está demitido.

— Há! Você é hilária — Seus braços se erguiam, numa tentativa vã de proteger os cabelos alvos dá água. — Mas sinceramente, deveria tentar dormir mais, o tempo não vai passar mais rápido se ficar divagando a noite toda. — O rapaz assumia um tom mais sério.

Coroa Sangrenta - Aço e FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora