Capítulo 11 - Volta (Johnny Hooker)

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Hélia Pimenta é uma celebração em forma de mulher. Não por acaso acabou sendo dançarina mesmo podendo ser tanta coisa; cada movimento seu é uma festa e ela fez questão de levar a mensagem ao longo da vida. Desde que a conheci me pergunto como pode tanta expressão guardar escondido tanto sentimento. Mulher sem fundo, quanto mais olhamos mais temos para olhar, uma camada sobre a outra até que a torre não aguenta mais e enverga, e pode até rachar, mas não quebra. Un vero architetta della vita.

Por tanta coisa para celebrar, a festa de noivado não comemorava só o aceite do pedido, mas toda uma variedade de coisas: a companhia de teatro, as apresentações no Brasil, a turnê, o reencontro com a família e toda uma história que Hélia fincou no asfalto velho do centro de São Paulo. E era inevitável, parte disso tudo era Leal. O grande Leal Cordeiro, que por mais que tentasse, não conseguia ser um coadjuvante naquela festa. Estava bonito e tenso num blazer de caimento perfeito que fixava em sua imagem uma elegância extra oficial, essa que têm os homens que já viram muita coisa na vida. Era o completo oposto de Antonello, tinha de truculento tudo o que o italiano tinha de esbelto, falavam em tons diferentes, numa orquestra de dissonância que cobria as vozes de todos os outros. Leal parecia inseguro mesmo com a face limpa e os cabelos brancos perfeitamente alinhados, enquanto o outro exibia seu nariz romano e ostentava a barba por fazer com uma descontração que beirava o desleixo. Mas não era esse o caso, muito pelo contrário. Se empoleirava feito um papagaio europeu por todo o canto tentando provar o mérito da mão da donzela que tanto batalhou para conquistar. Tinha una provocazione, vinda de Nello e um aria di solitudine de Leal que não combinava com a festa e, ainda sim, esse povo non vede. Che cecità, madonna mia! Nenhum dos dois admitiria, mas estavam ambos lutando internamente contra um incômodo que nenhum dos dois sabia o que era. Eram opostos demais para saber.

E Hélia, minha sorella gemella, tinha uma queda por extremos. Os cabelos loiros e o vestido elegante, leve, em tom pastel, com generoso decote, lhe rejuvenesceram pelos menos quinze anos. Estava tão alegre por estar de volta a casa que até conseguia disfarçar o turbilhão que tinha na mente. Mesmo com o mundo nas mãos, era notável que a volta para casa a iluminava mais que qualquer outro lugar. Falava do Brasil com gosto, um orgulho que dava tempero a bailarina errante que afirmava nunca parar. O completo oposto de mim que, por mais que eu ame aquele bellissimo idiota do Fernando, sinto falta de minha Turim. E de fato, parada não estava, de modo algum. Estava no ambiente que mais gostava, rodeada dos seus e unindo-os aos outros que encontrou pelo caminho. Um encontro de idiomas, sabores, canções e pessoas que não se juntariam se não fosse por ela.

Apesar de lindo, me dava certa preocupação essa paixão de Hélia pelos extremos. Denunciava o medo que tinha de novamente se fixar em algo e ser abandonada.

E, num momento de distração, quando uma mulher de cabelo chanel e batom vermelho subiu ao palco e começou a cantar algo parecido a um bolero contemporâneo, pude flagrar nos olhos de Hélia esse mesmo medo. Desviei os olhos da cantoria sofrida da moça e, atentando a letra, procurei o casal pelo salão.


Volta

Que o caminho dessa dor me atravessa

Que a vida não mais me interessa

Se você vai viver

Com um outro rapaz


Encontrei-os justo no lugar mais propício: estavam alinhados a poucos passos do palco, tão atentos à música quanto eu, que também podia ver Leal a uma certa distância dos prometidos. E o olhar dele não engana e não disfarça os conflitos que querem sair de seus olhos.

Tempos Modernos - A VoltaOnde histórias criam vida. Descubra agora