Capítulo 13 - As Árvores.

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A morte é um ser que nos ronda a todo momento. Alguns sabem que ela virá, outros a evitam. Nós sabíamos que a morte de minha mãe aconteceria. Voltei para o Brasil em julho. Jamais imaginei que só teria minha mãe por mais três meses. Eu conheci a fúria do câncer que a tomou e definhou em pouco tempo. Neste mesmo período eu me apaixonei por uma garota, uma mulher que estraçalhou meu coração em tantos pedaços que até hoje sinto que não escuto as batidas. Ele está morto. Eu não tenho e nem consigo ter sentimentos por mais ninguém.

Sentada, aqui, entre duas belas árvores. As lembranças do enterro de minha mãe passam na minha cabeça. Tantas lembranças vêm, mas nenhuma é tão forte quanto o momento que o caixão baixou na terra do Cemitério Jardim da Saudade.

Lembro que foi a hora mais sombria só aliviada pela rica visão que tive de Faye, entre árvores, olhando de longe, toda de preto com seus óculos escuros e um arranjo de rosas. Ela me olhava e desde que a vi, os meus olhos não conseguiram olhar para mais nada. Meus pensamentos ficaram absortos em uma vontade extrema de correr ao seu encontro e abraçá-la e a dor da raiva de ter sido abandonada no momento que mais precisava dela.

Mesmo de óculos escuros, eu sei que ela olhava para os meus. Fui retirada de meu fascínio de amor e raiva com o toque carinhoso de Marissa, que insistia em me levar para o carro após o funeral. No entanto, os meus olhos estavam fixos nela. Os que compareceram foram saindo aos poucos e relutante eu acompanhei Marissa. Não sem continuar olhando para aquelas árvores até que não a vi mais.

Ao entrar no carro, nenhuma lágrima, mas o meu coração... Esse eu ouvia em batidas marcadas. Olhei pela janela e a vi chegando próxima ao túmulo de mãe e depositando as rosas. Ela ainda olhou para meu carro, mas fechei o vidro escuro num impulso e segurei o choro ao vir a cena.

Não nos falávamos desde que ela virou as costas para mim naquela lanchonete. No mesmo dia, a professora Faye me bloqueou em todas as suas redes sociais e no aplicativo de mensagens também. Acho que amadureci uns dez anos ao sentir a dor da rejeição. Algo que nunca havia sentido o que um bloqueio virtual pode causar até sentir uma pontada dolorosa afundar em meu coração. Em meus 23 anos de idade foi a pior dor que senti depois da dor de perder meus pais.

O caminho foi tranquilo naquele dia. Apesar de meu coração ferido. Eu tinha responsabilidades mais urgentes. O testamento de minha mãe seria lido naquele mesmo dia e mesmo com uma vontade louca de chorar, eu fiquei fria e imbatível em meus sentimentos. Não deixei transparecer a dor que me consumia em vários pesadelos desde o dia fatídico do término.

O testamento foi lido e tive uma surpresa. Nossa casa no Recreio dos Bandeirantes havia sido deixada para Marissa como agradecimento pelo apoio, pela ajuda que dera aos meus pais. Todo o resto ficou comigo com uma ressalva. Para receber e ter direito à Herança, eu devia me casar e ter filhos. Achei a coisa mais absurda e cruel que uma mãe poderia fazer com uma filha e me levantei daquela mesa com tanta raiva e ódio que surpreendi o advogado e a Marissa.

Minha formatura aconteceria na mesma semana daquela leitura cruel. Eu estava decidida! Iria me formar e voltar para Austrália de onde jamais deveria ter saído.

...

A sexta-feira chegou rápida. Minhas malas já estavam prontas! Não falei com ninguém que sairia do país. Assim que a formatura acontecesse, eu iria direto para o Aeroporto Internacional.

O local estava lindo, devo confessar. O comitê de Formatura fez um excelente trabalho. Quando a cerimônia iniciou, eu a vi chegar toda de branco com um terninho maravilhoso, o cabelo lindo (tantas lembranças de puxar aqueles fios), a maquiagem forte num batom vermelho que me atraia até seus lábios, mas me mantive firme e evitei encarar. Eu sabia que ela me olhava da mesa de professores.

Lucas estava na galeria e me fazia gestos de orgulho. Um bom amigo que me ajudou com toda preparação para meu retorno ao exterior.

A entrega dos canudos era feita por Faye e outro professor. Na minha vez, o meu estava em suas mãos, mas ela o repassou ao professor. Até na minha formatura, ela me pisou. No fim da entrega dos canudos, entre um drink e outro me senti meio tonta e fui ao banheiro. Vomitei tudo que havia bebido numa tentativa de melhorar o mal estar que me tomava. Até que a escutei atrás de mim oferecendo um isotônico. Olhei para ela e não respondi e nem segurei a garrafa. Fui até a pia, lavei meu rosto. A olhei pelo espelho e ela estava lá com aquela roupa linda mostrando a curvatura de seu corpo me chamando pelos poros, mas me contive. Apenas abri a porta e saí. Foi a última vez que nós nos vimos.

Cinco longos anos se passaram. Jamais imaginei estar na Tailândia, exercendo minha profissão em apoio a uma ONG, cuidando de crianças em vulnerabilidade social em Bangkok e vivendo como uma pessoa comum sem o luxo que sempre vivi. Depois que saí do Brasil, por não aceitar as condições do testamento, eu passei dois anos na Austrália e de lá recebi a proposta de trabalhar aqui, neste país tão incrível que eu só conhecia de livros e cartões postais. A Herança permanece congelada sob os cuidados do nosso advogado, Dr. Alfredo Peçanha.

Entretanto, mesmo tendo se passado tantos anos, mesmo eu estando tão longe... O meu coração ainda era dela, mesmo morto. Olhando para as duas árvores que me cercavam, eu lembrava dela. Parecia um dos fantasmas que vivem falando por aqui. Tailandês é muito supersticioso. Tudo é motivo para um fantasma aparecer.

Bem, a verdade é que entre árvores, nós podemos conversar com pessoas ou afastá-las de vez de nossas vidas. Daqui da minha posição, eu conseguia visualizar casais apaixonados que conversavam sentados no banco da praça. Na pista, vários tailandeses e estrangeiros como eu corriam para uma boa saúde. Eu já havia dado duas voltas. Estava exausta e sentei para beber água e recuperar o fôlego.

Entre árvores, eu lembrei a rejeição que sofri e lembrei de Faye no meio das árvores com aquele buquê em mãos naquele cemitério durante o funeral. Uma brincadeira mal interpretada, uma fala fora de contexto, um término sem explicação plausível pode gerar medo nas pessoas e ações impensadas sobre questões que em uma conversa poderiam ser resolvidas. No entanto, o mundo virtual e real se mistura quando as pessoas se afastam, bloqueiam, tomam ranço sem motivo e acabam matando o que sempre existiu: a boa e velha amizade.

Parece que eu fico esperando que Faye apareça entre árvores, mas ainda que ela pudesse me oferecer apenas sua amizade. Hoje, eu não aceitaria. Não quero vê-la nunca mais enquanto viver.

Meu telefone apitou com várias mensagens do ADM no grupo da ONG. Amanhã haveria um grande evento e os funcionários, até os de folga como eu estavam sendo convocados com urgência. Pelo que entendi, a pessoa que a ONG tanto aguarda vem com muitas doações. É uma parceira de mais de 10 anos e uma parceira financeira que a ONG não podia perder. É a primeira vez que esta benfeitora visita Bangkok e estão todos alvoroçados. Ela é celebridade entre a equipe de ADMs, porém, seu nome só será revelado amanhã.

Enfim, o jeito é descansar. O dia não será fácil, mas será entre árvores no Parque Lumpini.

Como amar uma garota? - FayeYokoOnde histórias criam vida. Descubra agora