Amor e Coragem

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O quarto de Alid era simples e sóbrio, com paredes de pedra escura cobertas por tapeçarias que absorviam a luz da janela. A cama de madeira maciça estava centralizada, com lençóis dobrados com precisão, e a colcha de veludo cinza contrastava com o escuro do teto. Prateleiras de madeira alinhadas com livros antigos, pergaminhos e artefatos mágicos ocupavam as paredes. O candelabro de ferro no centro da sala emitia uma luz fraca, criando sombras que dançavam sobre o piso de madeira. Um tapete de padrões intrincados cobria parte do chão, combinando com as cores do ambiente. Ao lado da cama, uma adaga reluzente e frascos com líquidos coloridos estavam arrumados sobre uma mesa, sugerindo uma preparação meticulosa até nos momentos mais tranquilos.
  O quarto estava imerso em uma penumbra suave, com o som suave da respiração de Khaled quebrando o silêncio. Alid, com movimentos precisos, aplicava ungüentos nas feridas de Khaled, as mãos firmes e cuidadosas. A mãe de Alid, de expressão preocupada, falava com firmeza, suas palavras suaves, mas carregadas de preocupação. O cheiro sutil de ervas medicinais e ungüentos se misturava com o ambiente abafado e pesado da noite. Khaled estava sentado na borda da cama, os ombros tensos, o corpo ainda marcado pelos resquícios da batalha, enquanto o calor das memórias de sangue e magia pairava no ar. O brilho das chamas nas janelas, distantes da rua, esboçava sombras suaves sobre os móveis e prateleiras. O quarto, com seus objetos organizados e silenciosos, parecia envolver Khaled em um abraço sutil, dando-lhe um momento de repouso após o tumulto.
- Eu não esperava que fosse assim tão difícil, - murmurou, seus dedos traçando inconscientemente o contorno de uma cicatriz recém-formada.
Alid, colocou o frasco de unguento de lado e sentou-se ao lado de Khaled.
- Nenhuma batalha é fácil, Khaled. Especialmente quando envolve pessoas que conhecemos... e aqueles que querem nos destruir a qualquer custo. - Sua voz era firme, mas havia uma suavidade nela, uma compreensão profunda das realidades que ambos agora enfrentavam.
- Vicent não vai parar, ele conseguiu o amuleto, mesmo depois de tudo. E nós, bem, quase morremos.
- Ele não vai parar, mas também não podemos. Há muito mais em jogo agora. - Alid olhou para a janela, para o céu noturno além. - Mas isso não significa que devemos nos precipitar. Precisamos ser mais cuidadosos, mais estratégicos. Não podemos cometer erros como hoje.
  O silêncio envolvia o quarto, denso e carregado. O som da respiração de Khaled se misturava ao leve estalar das chamas no candelabro. A luz suave desenhava sombras nas paredes de pedra. Khaled sentiu o peso em seu peito, uma pressão que não conseguia dissipar. A tensão em seus ombros aumentava, os músculos ainda rígidos pela batalha, enquanto uma sensação de medo o percorreu, fria e intensa. Seus olhos estavam fixos no vazio à sua frente, o espaço entre ele e Alid carregado com o peso das escolhas que ambos haviam feito. O ar parecia mais espesso, mais pesado, enquanto a noite se aprofundava.
- Então, o que fazemos agora?
   Alid virou-se para ele, seus olhos encontrando os de Khaled com uma intensidade que fez o coração do bardo acelerar.
- Descansamos, nos recuperamos, e nos preparamos para o próximo passo. Porque quando enfrentarmos Vicent novamente, não podemos cometer os mesmos erros. Precisamos estar prontos para tudo.
  Khaled assentiu, sentindo o peso das palavras de Alid. Sabia que o caminho à frente seria ainda mais difícil, mas também sabia que não estaria sozinho. A Fênix Negra havia sido testada, mas ainda não havia sido derrotada.
  O momento foi interrompido pelo som da mãe de Alid na porta, carregando uma bandeja com comida.
- Agora, rapazes, antes de pensarem em mais batalhas, precisam se alimentar. Estão pele e osso, vocês dois. - disse Ana, com o tom gentil. Khaled sorriu, sentindo uma calorosa gratidão pela presença dela, enquanto Alid balançava a cabeça, um sorriso raro tocando seus lábios.
  A batalha havia passado, mas a guerra estava longe de terminar. E ali, naquele quarto simples, mas cheio de significado, Khaled e Alid encontravam um breve momento de paz antes da próxima tempestade.
   Enquanto Alid deixava o quarto, acompanhado por sua mãe, Khaled permaneceu sentado na cama, ainda processando tudo o que havia acontecido. Seus olhos varreram o ambiente até que se detiveram em um livro deixado sobre uma prateleira ao lado da cama. O título, gravado em uma caligrafia elegante e antiga, era "diário: Alidriano Wood ". O detalhe que capturou a atenção de Khaled foi a linguagem em que estava escrito: abissal. Com uma curiosidade crescente, Khaled pegou o livro e começou a folheá-lo, seus dedos deslizando sobre as páginas com reverência. Cada palavra era um eco de sentimentos profundos e antigos, de amores que transcendiam o tempo e a própria existência. A leitura fez seu coração bater mais rápido, suas emoções intensificadas com cada linha. Quando Alid retornou ao quarto, encontrou Khaled com o livro em mãos, seus olhos azuis brilhando de maneira incomum. O silêncio que se seguiu foi carregado de expectativa, como se o ar ao redor deles estivesse carregado de eletricidade.
  Khaled levantou o olhar para encontrar o de Alid, sua voz saindo suave, porém cheia de convicção.
- Alid... - ele começou, sentindo cada palavra pesar em seus lábios. - Eu te amo.
  O silêncio que seguiu foi intenso, apenas o som da respiração de ambos preenchendo o espaço. Khaled sabia que esse era o momento que poderia mudar tudo entre eles. Enquanto Khaled e Alid se envolviam em sua própria tempestade de emoções, Mary e Daemon caminhavam pelas ruas de Valkaria, lado a lado, mas em silêncio. Cada passo era uma batida pesada de seus corações, ambos ainda processando os eventos recentes. As batalhas que enfrentaram não foram apenas físicas, mas também mentais, trazendo à tona reflexões profundas sobre perdas e vitórias. Mary sentia o peso da magia que usara para desintegrar o elfo negro, um ato que ainda ecoava em sua mente. Ela sabia que não havia outra escolha, que a vida de seus amigos estava em jogo, mas isso não aliviava a sombra que pairava sobre seu coração.
- Quantas vezes mais terei que cruzar essa linha? - Ela se perguntava, temendo que cada batalha a levasse mais perto de um ponto sem retorno.
  Ela também refletia sobre a fragilidade da vida, como num instante alguém poderia estar ao seu lado, lutando com bravura, e no próximo, poderia não estar mais. A vitória tinha um sabor amargo, manchada pelas perdas e sacrifícios feitos ao longo do caminho.
  Daemon, por outro lado, estava mergulhado em suas próprias reflexões. A descoberta de sua verdadeira natureza como um lefou o deixara inquieto. Ele sempre soubera que havia algo diferente em si, algo que o separava dos outros. Mas agora, essa diferença era uma marca visível, um lembrete constante da Tormenta que permeava o mundo. "O que é um lefou?"A pergunta ecoava em sua mente. Ele se questionava se poderia continuar lutando ao lado de seus amigos, sabendo que a escuridão dentro de si era uma ameaça constante. Mas ao mesmo tempo, Daemon sabia que suas vitórias não eram apenas sobre os inimigos que enfrentava, mas sobre o controle que exercia sobre si mesmo, sobre o monstro que se recusava a deixar sair. Caminhando ao lado de Daemon, Mary finalmente quebrou o silêncio.
- Nós sobrevivemos a mais uma batalha. Mas, Daemon, isso realmente conta como uma vitória?
  Daemon parou e olhou para Mary, os olho analisando-a com intensidade. Ele entendia a dúvida que ela carregava, porque ele também a sentia.
- A vitória não é apenas sobre derrotar o inimigo, Mary. É sobre continuar, mesmo quando tudo parece perdido.
  Mary assentiu, absorvendo as palavras de Daemon. Ela sabia que, apesar das cicatrizes que carregavam, internas e externas, eles continuariam lutando. Porque no final, era isso que os fazia quem eram-guerreiros que, apesar de suas dúvidas e medos, se recusavam a desistir.

  De dia.
  Daemon retornou ao monastério. A revelação de sua verdadeira natureza como lefou o deixara inquieto, e ele sabia que precisava de respostas -respostas que apenas seu mestre poderia fornecer. O monastério, um refúgio de serenidade e disciplina, parecia o lugar certo para confrontar suas dúvidas, mas ao mesmo tempo, a paz ali reinante contrastava com a turbulência que fervilhava em seu interior. Seu mestre, um homem de poucas palavras, mas de sabedoria infinita, o aguardava no pátio de treinamento. O sol do final da tarde lançava longas sombras sobre as pedras gastas, criando um ambiente de reflexão e introspecção. Daemon se aproximou, ajoelhando-se em respeito antes de levantar o olhar para encontrar o do mestre.
- Você carrega um peso em seu coração, Daemon, - o mestre disse, a voz tranquila como um rio calmo. - Diga-me, o que o aflige?
   Daemon respirou fundo, tentando encontrar as palavras certas.
- Mestre... eu descobri que sou um lefou. E agora, sinto que não sei mais quem sou, ou o que devo fazer com esse conhecimento.
   O mestre o observou por um momento, analisando suas palavras e a preocupação gravada em seu rosto. Então, começou a falar, sua voz soando como uma história antiga sendo recontada.
- Em minhas andanças, encontrei membros das mais variadas raças. De todas, a mais misteriosa é a dos lefou. São considerados meios-demônios, como se a Tormenta pudesse atacar um corpo e deixar suas marcas, corrompendo de forma irreversível o que antes era puro. Pensando assim, até faz sentido. Um lefou pode surgir simplesmente porque os pais são aventureiros que tiveram contato com a Tormenta, como uma insidiosa vingança contra aqueles que tentaram destruí-la.
  Daemon ouviu atentamente, cada palavra do mestre parecia lançar luz sobre as sombras de sua mente.
- Mas mestre, - ele interrompeu, - se somos considerados uma aberração, uma mácula... como podemos encontrar um lugar no mundo?
  O mestre sorriu suavemente, um brilho de compreensão em seus olhos.
- É verdade que muitos veem os lefou como algo a ser temido ou rejeitado. Alguns, por sua aparência grotesca ou habilidades aberrantes, acabam abraçando o mal. Mas há outros, Daemon, que escolhem um caminho diferente. Eles usam o que receberam para lutar contra a Tormenta, para combater o mal que permeia o mundo. E são justamente esses que tornam-se aliados inestimáveis na guerra contra a escuridão.
Daemon refletiu sobre as palavras do mestre.
- Então, há esperança para mim, mestre?
- Há sempre esperança, Daemon. A mácula que você carrega pode ser vista como uma maldição por alguns, mas você pode transformá-la em uma arma, uma ferramenta para proteger aqueles que ama e para lutar contra as forças que tentam destruir Arton. Sua jornada é sua para escolher, e eu acredito que você escolherá o caminho certo.
  Daemon sentiu um peso sair de seus ombros. Ele sabia que sua verdadeira batalha ainda estava por vir, mas agora, ele estava pronto para enfrentá-la com o conhecimento de quem realmente era e do que poderia se tornar. O mestre observou Daemon com orgulho, vendo nele o potencial para ser mais do que um guerreiro - para ser um símbolo de esperança em tempos sombrios.
- Vá, Daemon, - ele disse, - continue seu treinamento e lembre-se: a verdadeira força não está na ausência de escuridão, mas na capacidade de superá-la.
  Daemon assentiu, sentindo uma nova energia pulsar em suas veias. Ele se levantou, pronto para treinar, pronto para dominar não apenas suas habilidades, mas também a escuridão que carregava dentro de si.

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