O Confronto Velado

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Júlia se levantou naquela manhã com um nó no estômago. A mensagem de Flávia da noite anterior ainda estava na sua cabeça: "Precisamos conversar. Amanhã depois do treino?" O que Flávia queria dizer com aquilo? As coisas entre elas tinham ficado estranhas, mas seria algo sério o bastante para exigir uma conversa formal? Desde que Luana apareceu, o clima mudou, e agora tudo parecia incerto.

No ginásio, o clima estava mais pesado do que nunca. Júlia tentou se concentrar no aquecimento, mas não podia deixar de lançar olhares furtivos para Flávia, que também estava visivelmente inquieta. Os olhos dela, geralmente cheios de vida, estavam distantes, perdidos em algo que Júlia não conseguia alcançar.

Flávia sempre foi sua confidente, sua amiga mais próxima. Elas se conheciam como ninguém. Mas agora, parecia haver uma barreira entre elas. Uma distância que Júlia não sabia como encurtar. Ou talvez soubesse, mas tinha medo de tentar.

O treino foi um teste de paciência. Cada movimento que antes fluía com naturalidade agora parecia forçado, pesado. E Luana, como sempre, estava ali, se movendo pelo ginásio com aquela confiança silenciosa, sempre por perto, mas nunca totalmente dentro da dinâmica entre Júlia e Flávia. A presença dela era quase um lembrete constante de que as coisas tinham mudado.

Quando o treinador finalmente encerrou a sessão, Júlia sabia que o momento tinha chegado. Flávia guardou seus pertences rapidamente e, antes de sair, olhou para Júlia com um gesto discreto, indicando para que a seguisse.

Elas caminharam em silêncio até uma das salas de descanso, onde a tensão parecia se materializar no ar. Era um pequeno espaço, com sofás e uma janela aberta, deixando entrar a luz suave do fim de tarde. Júlia se sentou, nervosa, enquanto Flávia permanecia de pé, de braços cruzados, como se buscasse as palavras certas para começar.

"Precisamos conversar sobre... nós," começou Flávia, de forma hesitante, seus olhos se fixando nos de Júlia por um segundo, antes de desviarem.

Júlia sentiu seu coração bater mais rápido. Sobre nós? O que exatamente isso significava? Amizade? Treino? Ou algo mais que ela não estava disposta a admitir? De qualquer maneira, o tom de Flávia indicava que ela também não sabia bem por onde começar.

"Eu sei," respondeu Júlia, sem muita certeza do que dizer a seguir. "As coisas... mudaram, né? Eu sinto isso também."

Flávia assentiu, ainda evitando o olhar de Júlia. Ela parecia inquieta, algo incomum para alguém sempre tão confiante e centrada. "Eu só... sinto que a gente não está mais como antes. E eu não sei o porquê."

Aquilo fez o coração de Júlia apertar. Flávia estava verbalizando exatamente o que ela mesma vinha sentindo, mas não tinha conseguido colocar em palavras. A proximidade que elas sempre tiveram, a amizade intensa, parecia diferente agora. Havia algo a mais, mas nenhuma das duas conseguia – ou talvez quisesse – nomear.

"Você acha que é por causa da Luana?" Júlia perguntou, sem pensar muito. A menção de Luana sempre trazia uma reação em Flávia, e ela viu a ginasta franzir o cenho, como se tentasse entender o impacto daquela nova pessoa em suas vidas.

Flávia deu de ombros. "Talvez? Não sei. A Luana chegou e... parece que tudo ficou diferente. Mas não é só isso. Acho que é a gente. Algo em nós mudou, e eu não consigo entender o que é."

Júlia sentiu um frio na barriga. Ela não podia negar que algo tinha mudado. Ultimamente, os olhares de Flávia pareciam durar mais do que deveriam, e seus abraços, antes inocentes e confortáveis, agora faziam seu coração acelerar de um jeito estranho. Mas isso não era algo que ela estava pronta para admitir, nem para si mesma.

Elas ficaram em silêncio por um momento. Júlia olhava para suas mãos, sentindo-se desconfortável. Aquela amizade tão intensa, que sempre foi um refúgio, agora estava envolta em uma confusão de emoções que ela não sabia como lidar.

"Você acha que a gente está se afastando?" Júlia perguntou, rompendo o silêncio.

Flávia finalmente olhou diretamente para ela, e seus olhos estavam carregados de algo que Júlia não conseguia decifrar completamente. "Eu não sei. Mas às vezes parece que sim. E outras vezes... parece que a gente está mais perto do que nunca. Só que de um jeito... diferente."

Aquilo atingiu Júlia em cheio. Ela sentia o mesmo, mas não sabia como explicar. Não era apenas a amizade forte que as conectava. Havia algo a mais, algo que ela não conseguia entender ou admitir. Talvez fosse só a proximidade intensa de anos de convivência. Talvez fosse ciúmes, ou algum tipo de apego emocional que se confundia com outra coisa. Mas a verdade é que ela também não sabia ao certo o que sentia por Flávia.

Júlia respirou fundo, tentando ganhar tempo para pensar. "Acho que... eu também me sinto assim, mas é confuso. Eu... sempre vi você como minha melhor amiga, Flávia. Minha pessoa de confiança. Mas agora... parece que tem alguma coisa diferente, só que eu não sei o que é. Eu não sei como lidar com isso."

Flávia sentou-se ao lado de Júlia, seus ombros quase se tocando, mas mantendo uma distância cautelosa. Ela parecia igualmente perdida. "Eu também não sei. Talvez seja a pressão de tudo... os treinos, as competições, as expectativas. Ou talvez... a gente esteja complicando algo que é simples."

"Só amizade?", perguntou Júlia, sem muita certeza de que queria ouvir a resposta.

Flávia hesitou, olhando para frente, seus olhos fixos em algum ponto no chão. "Sim... talvez. É, deve ser isso. Somos amigas. Melhores amigas. Mas... às vezes eu me pergunto se... isso não está bagunçando tudo."

As palavras pairaram no ar por um momento, enquanto as duas processavam o que tinha sido dito. Júlia sentiu uma leve pontada de alívio misturada com uma confusão ainda maior. Era estranho admitir, mas parte dela estava grata por Flávia também estar sentindo essa incerteza. Mas, ao mesmo tempo, era assustador pensar que talvez estivesse mais envolvida emocionalmente do que queria acreditar.

"Então... o que a gente faz com isso?" Júlia perguntou, sua voz baixa.

Flávia suspirou. "Acho que a gente tenta não complicar. Talvez a gente esteja apenas cansada, nervosa. Talvez o que estamos sentindo seja só... uma fase. E quando as coisas se acalmarem, tudo volte ao normal."

Júlia queria acreditar nisso, mas não conseguia ter tanta certeza. "Talvez. Mas... e se não voltar ao normal?"

Flávia deu de ombros novamente, um pequeno sorriso melancólico surgindo em seus lábios. "Então a gente vai descobrir juntas, como sempre fizemos."

As duas ficaram ali, sentadas lado a lado, sem mais palavras. O peso da conversa não aliviou a tensão, mas criou uma espécie de trégua. Ambas estavam perdidas em seus próprios sentimentos, sem saber ao certo o que aquilo significava. Por enquanto, era mais fácil deixar as coisas como estavam, sem tentar definir ou rotular o que estavam sentindo.

Quando Flávia finalmente se levantou para ir embora, ela olhou para Júlia com aquele mesmo sorriso meio triste. "A gente se vê amanhã?"

Júlia assentiu, sentindo um nó na garganta. "Sim, claro."

Flávia saiu, e Júlia ficou ali, sozinha, refletindo sobre tudo. Talvez fosse só amizade. Talvez estivesse complicando demais algo que sempre foi simples. Ou talvez... estivesse começando a perceber que o que sentia por Flávia ia além da amizade, e ela simplesmente não sabia lidar com isso ainda.

Mas, por enquanto, deixaria a incerteza no ar.

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