CAPÍTULO UM

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A CAÇADA

Han Alister se agachou junto à nascente fumegante de lama, rezando para que a crosta termal
sustentasse seu peso. O garoto amarrou um lenço sobre a boca e o nariz, mas, mesmo assim, seus
olhos ainda ardiam e lacrimejavam com os vapores sulfúricos que emergiam das borbulhas da
gosma. Ele estendeu a vareta que usava para cavar até uma planta com flores verdes biliosas, à
beira da nascente. Han cravou a ponta da vareta sob o arbusto, arrancou-o da lama e jogou
dentro da bolsa de couro de cervo que trazia pendurada no ombro. Finalmente, pisando com
muito cuidado, levantou-se e voltou à terra firme.
O rapaz estava quase lá quando um dos pés rompeu a frágil superfície, e ele afundou a
panturrilha até a metade na lama cinzenta, grudenta e superaquecida.
- Pelos malditos ossos de Hanalea! - ganiu Han e se atirou para trás, torcendo para não
aterrissar de costas em outra fossa de lama. Ou, pior, numa das fontes de água azul que, em
questão de minutos, ferveriam a carne até que soltasse dos ossos.
Felizmente, ele caiu em terra sólida, entre os pinheiros, deixando o ar escapar dos pulmões.
Ele ouviu Dançarino de Fogo descer correndo a encosta, atrás de si, abafando o riso. Dançarino
agarrou os pulsos de Han e o puxou de volta ao terreno seguro.
- Vamos mudar seu nome, Caçador Solitário - comentou Dançarino, se acocorando ao
lado de Han. O rosto bronzeado de Dançarino tinha uma expressão solene, os espantosos olhos
azuis inocentemente arregalados, mas os cantos de sua boca estavam curvados. - Que tal
"Chafurdador de Lodaçais"? "Lamacento", para simplificar?
Han não achou a menor graça. Praguejando, catou um punhado de folhas para limpar a bota.
Deveria ter vindo com os velhos e surrados mocassins. As botas de cano alto, até o joelho, o
salvaram de uma queimadura feia, mas o pé direito do par estava encrostado de lama fétida, e ele
sabia que levaria uma bela bronca quando chegasse em casa.
- Essas botas são feitas nos clãs - ralharia a mãe dele. - Você faz ideia de quanto elas
custam?
Não fazia diferença o fato de ela não ter pago pelos calçados, para começar. A mãe de
Dançarino, Willo, tinha feito um escambo com Han e dera as botas em troca do raro cogumelo
mãe-da-morte que o rapaz havia encontrado na primavera passada. A mãe de Han não ficou
nada feliz quando ele as levou para casa.
- Botas? - Ela tinha encarado o filho sem conseguir acreditar. - Botas chiques? Quanto
tempo vai levar pra elas ficarem pequenas em você? Você não poderia ter pedido dinheiro? Trigo
pra encher nossas barrigas? Ou lenha pra lareira e cobertores pras nossas camas? - Ela avançou para ele com o colherão de pau que sempre parecia estar por perto. Han recuou, sabendo por
experiência própria que uma vida de trabalho duro tinha dado àquela mulher um braço muito
forte.
A mãe o deixou com vários machucados nas costas e nos ombros. Mas ele ficou com as botas.
Elas valiam muito mais do que o cogumelo que dera em troca, e ele sabia disso. Willo sempre
fora generosa com o rapaz, com a mãe e com Mari, sua irmã, porque não havia um homem da
casa. A não ser que você considerasse Han, e quase ninguém considerava. Mesmo que ele já
tivesse 16 anos e fosse praticamente um adulto.
Dançarino trouxe água da Fonte do Grota de Fogo e jogou sobre a bota gosmenta de Han.
- Por que será que só as plantas nojentas que crescem em lugares nojentos são valiosas? -
indagou Dançarino.
- Se elas crescessem num jardim, quem pagaria bem por elas? - grunhiu Han e limpou as
mãos nas calças. Os braceletes de prata nos pulsos dele também estavam enlameados, com sujeira
encrostada bem fundo nos delicados entalhes. Seria melhor escová-los antes de voltar para casa,
ou levaria bronca por isso também.
Era um fim apropriado para um dia frustrante. Eles estavam fora desde o amanhecer, e tudo
que conseguiram foram três lírios sulfúricos, uma bolsa cheia de casca de canela, um pouco de
capim-navalha e um punhado de agarradeira, que ele poderia empurrar como se fosse erva-de-
donzela na feira das terras baixas. A falta de moedas na bolsa da mãe fizera Han ir às montanhas
buscar ervas cedo demais na estação.
- Isto é uma perda de tempo - comentou, mesmo que tivesse sido ideia dele. O rapaz catou
uma pedra no chão e a atirou no poço de lama, onde ela desapareceu com um "plop" viscoso. -
Vamos fazer outra coisa.
Dançarino inclinou a cabeça, balançando as tranças entremeadas de contas.
- O que você...?
- Vamos caçar - decidiu Han, tocando o arco pendurado às costas.
Dançarino franziu o cenho, pensativo.
- Poderíamos tentar o Prado da Árvore Queimada. Os cervos estão subindo das terras baixas.
Sabiá disse que viu eles lá anteontem.
- Então vamos. - Han não precisou pensar muito no assunto. Era a estação da fome. Os
jarros de feijão, repolho e peixe seco que a mãe tinha reservado para o longo inverno tinham se
evaporado. Mesmo que ele gostasse da ideia de se sentar para comer outra tigela de feijão com
repolho, ultimamente só havia mingau e mais mingau, com um pedaço ocasional de carne
salgada, para variar. Uma peça de carne fresca na mesa mais do que compensaria a coleta fraca
daquele dia.
Os dois partiram para leste, deixando as fontes fumegantes para trás. Dançarino estabeleceu
um passo incansável, devorando a distância enquanto desciam a várzea do rio Dyrnne. O mau
humor de Han começou a diminuir com o cansaço pelo esforço físico.
Era difícil ficar com raiva num dia como aquele. Sinais da primavera brotavam a toda volta.
Repolhos-de-gambá, beijos-de-moça e maçãs-de-maio cobriam o solo, e Han inspirou o perfume da terra morna, liberta da cobertura do inverno. O rio Dyrnne espumava sobre pedras e rugia sobre quedas, alimentado pela neve que derretia nas encostas mais elevadas. O dia esquentou conforme os dois garotos desciam, e logo Han tirou a jaqueta de couro de cervo e enrolou as mangas da camisa até acima dos cotovelos.
O Prado da Árvore Queimada fora o local de um incêndio recente. Em alguns poucos anos, seria recuperado pela floresta, mas, por enquanto, era um mar de capim alto e flores silvestres, rebitado com os tocos calcinados de pinheiros. Outros troncos estavam caídos por ali como se gigantes tivessem treinado arremesso de lança. Pinheiros que chegavam à altura do joelho recobriam o solo, e moitas de frutas silvestres se regalavam ao sol onde antes havia apenas a sombra profunda de um pinheiral.
Lá estava uma dúzia de cervos, de cabeça baixa, pastando o capim tenro da primavera. As grandes orelhas se agitavam para espantar insetos, e os pelames vermelhos cintilavam como
manchas de tinta contra os tons de marrom e verde do prado.
O coração de Han se acelerou. Dançarino era melhor arqueiro, mais paciente na hora de escolher o tiro, mas Han não via motivo para que não abatessem dois cervos, um para cada. O estômago sempre vazio do rapaz grunhiu com a ideia de carne fresca.
Han e Dançarino contornaram o prado até o lado que ficava contra o vento e mais abaixo em relação à manada. Agachado detrás de uma grande pedra, Han sacou o arco e retesou a corda frouxa, testando-a com o polegar calejado. O arco era novo, feito para acompanhar seu
crescimento recente. Fora feito nos clãs, como tudo mais em sua vida que era belo e útil.
O garoto se levantou lentamente e puxou a corda até a orelha. Então parou e farejou o ar. A brisa trazia o odor distinto de madeira queimando. O olhar de Han subiu a montanha até
encontrar uma fina linha de fumaça que cortava a encosta. Virou-se para Dançarino e ergueu as sobrancelhas, confuso. Dançarino apenas encolheu os ombros. O solo estava encharcado, e a folhagem primaveril, verde e luxuriante. Nada deveria queimar naquela estação.
Os cervos no prado também perceberam o cheiro. Ergueram as cabeças, fungaram e bateram
os cascos, inquietos, exibindo o branco de seus olhos castanhos e brilhantes. Han olhou o alto da
montanha novamente. Agora conseguia ver chamas alaranjadas, purpúreas e esverdeadas na base da linha de fogo, e o vento que soprava encosta abaixo vinha quente e carregado de fumaça.
Púrpura e verde? Han pensou. Será que havia plantas que queimavam desse jeito?
A manada aguardou por um momento, ansiosa, como se não soubesse para onde ir, e então todos se viraram ao mesmo tempo e dispararam bem na direção dos rapazes.
Han ergueu o arco, apressado, e conseguiu disparar uma flecha enquanto os cervos passavam
aos pulos. Nem passou perto de acertar. Dançarino não se saiu melhor.
Han arremeteu atrás da manada, saltando obstáculos, na esperança de tentar novamente, mas
foi em vão. Viu um relance tentador dos penachos brancos dos rabos dos animais antes que eles
desaparecessem em meio aos pinheiros. Resmungando consigo mesmo, voltou até Dançarino, que fitava o alto da montanha. A linha de chamas extravagantes vinha na direção deles,
acelerando, e deixava uma paisagem calcinada e desolada em seu rastro.
- O que está acontecendo? - Dançarino balançou a cabeça. - Não acontecem queimadas nesta época do ano.
Enquanto os dois observavam, o fogo ganhou impulso, saltando pequenos barrancos. Brasas
cintilantes se espalhavam por todos os lados, carregadas pelos ventos descendentes. O calor fez arder a pele exposta do rosto e das mãos de Han. O rapaz espanou cinzas dos cabelos e afastou fagulhas da jaqueta, começando a perceber o perigo que corriam.
- Vamos lá. Melhor sair do caminho!
Os dois correram pela crista, escorregando e deslizando no cascalho e nas folhas úmidas, cientes de que uma queda poderia ser desastrosa. Refugiaram-se detrás de um rochedo proeminente que despontava da fina pele de vegatação da montanha. Coelhos, raposas e outros animaizinhos passaram pelos dois a galope, pouco à frente das chamas. A linha de fogo ultrapassou os garotos, chiando, estalando e consumindo vorazmente tudo que encontrava pela frente.
E atrás dela vieram três jovens a cavalo, como pastores conduzindo a chama que seguiam.
Han os fitou, hipnotizado. Eram garotos da mesma idade dele e de Dançarino, mas vestiam belos mantos de seda e lã de verão que tocavam os estribos, e longas estolas que cintilavam com emblemas exóticos. Os cavalos que cavalgavam não eram os pôneis montanheses, compactos e
peludos, mas ginetes das terras baixas, com longas e delicadas pernas, e pescoços orgulhosamente
arqueados; suas selas e arreios eram ajaezados com engastes de prata. Han entendia de cavalos, e aqueles animais custariam um ano de salário de uma pessoa comum.
O ganho de uma vida inteira, para ele.
Os garotos cavalgavam com uma arrogância natural e relaxada, como se não percebessem a paisagem chocante que os cercava.
Dançarino ficou paralisado, com o rosto bronzeado se endurecendo e os olhos azuis se tornando mortiços e opacos.
- Feiticeiros - murmurou, repetindo o termo usado pelos clãs para se referir aos magos. -
Eu já deveria saber.
Feiticeiros, Han pensou, arrepiado de empolgação e medo, pois jamais vira um deles de perto.
Magos não se misturavam a gentinha como ele. Viviam em palácios sofisticados ao redor do Castelo de Fellsmarch e frequentavam a corte da rainha. Muitos serviam como embaixadores em terras estrangeiras, com um propósito específico: os rumores de seus poderes mágicos mantinham invasores longe do reino.
O mais poderoso de todos era chamado de Grão Mago, conselheiro e protetor místico da rainha de Fells.
"Fique longe dos magos", era o que a mãe sempre dizia. "Você não quer ser notado por gente desse tipo. Chegue perto demais, e você pode acabar queimado vivo ou transformado em algo imundo e profano. Gente comum é como poeira nas botas deles."
Como tudo que era proibido, os magos fascinavam Han, mas ele jamais tivera a chance de quebrar aquela regra. Feiticeiros não tinham permissão de entrar nas Montanhas Espirituais, exceto para visitar a casa do conselho que tinham em Lady Gris, com vista para o Vale. Nem
jamais se aventurariam na Feira dos Trapilhos, o bairro pobre de Fellsmarch que Han chamava de lar. Quando eles precisavam de alguma coisa das feiras, mandavam os servos comprar.
Fora assim que os três povos do Reino de Fells alcançaram uma paz tênue: os magos das IlhasSetentrionais, os camponeses do Vale e os clãs das montanhas.
Conforme os cavaleiros se aproximavam do esconderijo da dupla, Han os estudava avidamente. O feiticeiro que seguia à frente tinha cabelos negros e lisos penteados para trás, caindo até os ombros. Exibia vários anéis nos longos dedos e um pingente muito intrincado
pendurado no pescoço por uma pesada corrente. Sem dúvida, era algum tipo de amuleto poderoso.
As estolas do rapaz eram ornadas com falcões prateados, com as garras estendidas num ataque.
Falcões prateados, pensou Han. Deve ser o emblema da Casa dele.
Os outros dois eram ruivos, com narizes achatados idênticos e estolas decoradas com silhuetas de gatos rosnando. Han presumiu que fossem irmãos ou primos. Cavalgavam um pouco atrás do mago de cabelos negros e pareciam ser submissos a ele. A dupla de ruivos não estava usando nenhum amuleto.
Han teria se contentado em permanecer escondido e observar o trio passando, mas Dançarino tinha outras ideias. Ele irrompeu das sombras, praticamente embaixo dos cascos dos cavalos, e assustou os animais de modo que os três cavaleiros foram forçados a lutar para se manterem nas selas.
- Sou Dançarino de Fogo - proclamou em voz alta, na língua comum, - do Campo Pinhos Marisa. - Dançarino ignorou as tradicionais boas-vindas e foi direto ao ponto. - Esse clã exige saber quem são vocês, e o que magos estão fazendo em Hanalea, pois isso é proibido pela Naéming. - Dançarino estava aprumado, com as mãos cerradas ao lado do corpo, mas parecia pequeno perante os três invasores em seus cavalos.
O que tinha dado em Dançarino?, indagou-se Han, emergindo com relutância do esconderijo para se colocar ao lado do amigo. Ele também não gostava do fato de os feiticeiros terem invadido as terras de caça deles, mas era esperto o bastante para não enfrentar feitiçarias.
O garoto de cabelos negros encarou Dançarino, e então hesitou, com os olhos negros se arregalando de surpresa antes que ele pudesse recuperar a expressão fria de desdém.
Será que ele conhece Dançarino? O olhar de Han foi de um ao outro. Dançarino não parecia conhecê-lo.
Mesmo que Han fosse mais alto que o amigo, os olhares dos magos passaram por ele sem quase notá-lo, e então voltaram a Dançarino. Han olhou para suas perneiras de couro de cervo e a camisa da Feira dos Trapilhos, invejando o luxo e o refinamento dos forasteiros. O rapaz se sentiu invisível. Insignificante.
Dançarino não se intimidou com os feiticeiros.
- Eu perguntei seus nomes - intimou. Então indicou as chamas que se afastavam. - Aquilo parece fogo de mago para mim.
Como é que Dançarino sabia qual era a aparência de fogo de mago?, Han se perguntou. Ou ele estava apenas blefando?
O rapaz com o signo do falcão olhou os outros dois de esguelha, como se ponderasse uma resposta. Ao perceber que não teria ajuda dos amigos, ele se voltou para Dançarino.
- Sou Micah Bayar, da Casa Aerie - anunciou, como se o mero nome fosse colocar os dois caçadores de joelhos. - Estamos aqui por ordens da rainha. Sua Majestade, rainha Marianna, e
as princesas Raisa e Mellony estão caçando no vale abaixo. Estamos conduzindo os cervos até elas.
- A rainha mandou você incendiar a montanha para que ela pudesse ter um bom dia de caça?
- Dançarino balançou a cabeça, descrente.
- Foi o que eu disse, não foi? - Algo na expressão do mago fez Han perceber que aquela não era bem a verdade.
- Os cervos não pertencem à rainha - afirmou Han. - Temos tanto direito de caçá-los quanto ela.
- De qualquer maneira, vocês são menores de idade - continuou Dançarino. - Vocês não têm permissão para usar magia. Nem de carregar um amuleto. - Ele apontou a joia no pescoço de Bayar.
Como é que Dançarino sabia disso?, pensou Han. Ele mesmo não sabia nada das regras dos magos. Mas Dançarino parecia ter acertado na mosca, porque Bayar olhou feio para ele.
- Isso é assunto de mago - disse o feiticeiro. - Não é problema seu.
- Bem, bruxo Micah - retrucou Dançarino, agora usando o insulto dos clãs para os magos, se a rainha Marianna quiser caçar cervos no verão, ela pode vir às terras altas atrás deles. Como sempre fez.
Bayar ergueu as sobrancelhas negras.
- Vir às terras altas? Onde ela poderá dormir num chão de terra, ombro a ombro com uma dúzia de parentes imundos, ficar uma semana sem um banho quente e voltar para casa fedendo a fumaça e suor, com um caso sério de sarna noturna? - Bayar fungou de rir, e os amigos o imitaram. - Não a condeno por preferir as acomodações do Vale.
Ele não sabe de nada, pensou Han, lembrando-se das cabanas aconchegantes com seus catres, as canções e histórias entoadas ao redor da fogueira, os banquetes compartilhados de um panelão comum. Tantas noites Han tinha adormecido sob pelegos e cobertores feitos pelos clãs, com o fio da meada das velhas canções se entremeando em seus sonhos. Han não era de um clã, mas frequentemente desejava ser. Era o único lugar onde ele se sentia em casa. O único lugar onde ele não se sentia como se estivesse pendurado por um fio.
- A princesa Raisa passou três anos sendo criada no Campo Demonai - afirmou Dançarino, com o queixo projetado teimosamente.
- O pai da princesa é do clã e tem ideias um tanto arcaicas - argumentou Bayar, e seus companheiros riram outra vez. - Eu, pessoalmente, não me casaria com uma garota que tivesse passado tanto tempo nos campos. Acharia que ela foi corrompida.
Num instante, Dançarino estava com a faca na mão.
- O que foi que você disse, bruxo? - indagou Dançarino, com a voz gélida como as águas do Dyrnne.
Bayar deu um puxão nas rédeas, fazendo o cavalo recuar e se distanciando de Dançarino.
- Eu diria que as mulheres devem ter mais medo dos bruxos do que do povo dos Campos -continuou Dançarino.
Com o coração acelerado, Han avançou até o lado do amigo e pôs a mão no cabo da própria faca, tomando cuidado para não entrar na frente do braço que Dançarino usaria para lançar a adaga. Dançarino era ágil com os pés e bom com uma lâmina. Mas lâmina contra magia?
Mesmo duas facas...
- Relaxe, cabeça de fogo. - Bayar lambeu os lábios, com olhos fixos na faca de Dançarino.
- É o seguinte: meu pai diz que as garotas que vão aos campos voltam orgulhosas, cheias de opiniões e difíceis de controlar. Só isso. - Ele deu um sorrisinho, como se fosse uma piada que todos poderiam compartilhar.
Dançarino não sorriu.
- Então você está dizendo que a herdeira legítima do trono de Fells precisa ser... controlada?
- Dançarino - disse Han, mas o amigo dispensou o aviso com um aceno da cabeça.
Han avaliou os três magos como faria com seus oponentes em qualquer briga de rua. Os três tinham espadas elaboradas, que não tinham sido muito utilizadas. Tirá-los dos cavalos, esse é o truque, pensou o rapaz. Um corte rápido na correia da cilha resolveria o problema. Chegar bem
perto, de modo que as espadas não fossem muito úteis. Nocauteie Bayar, e os outros sairão correndo.
Um dos magos ruivos pigarreou nervosamente, como se estivesse constrangido com o rumo
da conversa. Era o mais velho dos dois, atarracado, com mãos gorduchas, pálidas e sardentas, que
agarravam as rédeas com força.
- Micah - chamou ele, no dialeto do Vale, indicando o terreno abaixo. - Vamos lá. Assim a gente perde a caçada.
- Espere um pouco, Miphis. - Bayar fitou Dançarino de cima, com os olhos negros cintilando no rosto pálido. - Você não se chama Hayden? - inquiriu ele em língua comum, citando o nome que Dançarino usava no Vale. - É só... Hayden, não é? Um nome mestiço, já
que você não tem pai.
Dançarino enrijeceu.
- Esse é o meu nome no Vale - retrucou, erguendo o queixo desafiadoramente. - Meu verdadeiro nome é Dançarino de Fogo.
- Hayden é um nome para magos - continuou Bayar, mexendo no amuleto. - Como você ousa presumir...
- Eu não presumo nada - Dançarino interrompeu. - Eu não escolhi esse nome. Sou dos clãs. Por que escolheria um nome de bruxo?
Boa pergunta, pensou Han, olhando de um ao outro. Alguns membros dos clãs usavam nomes típicos das terras baixas quando iam ao Vale. Mas como um bruxo como Micah Bayar poderia saber o nome que Dançarino usava no Vale?
Bayar ficou vermelho e levou algum tempo para preparar uma resposta.
- Isso é o que você alega, Hayden - disse Bayar, arrastando as palavras. - Talvez você tenha gerado a si próprio. O que significa que você e a sua mãe...
O braço de Dançarino se ergueu num relance, mas Han conseguiu desviá-lo com um empurrão exatamente quando a faca deixou a mão do amigo, acabando cravada, trêmula, no tronco de uma árvore.
Calma, Dançarino, pensou Han, encolhendo os ombros perante o olhar furioso do companheiro. Matar um mago amigo da rainha criaria problemas gravíssimos para os dois.
O feiticeiro Bayar ficou paralisado por um instante, como se não pudesse acreditar no que acabara de acontecer. Então, o rosto dele ficou branco de raiva. Estendeu uma das mãos, imperiosa, na direção de Dançarino, segurou o amuleto com a outra e começou a murmurar um
feitiço na linguagem da magia, tropeçando um pouco nas palavras.
- Micah - exclamou o mais esguio dos magos, aproximando o cavalo. - Não. Não vale a pena. O fogo foi uma coisa, mas, se descobrirem que nós...
- Cala a boca, Arkeda - Bayar interrompeu. - Vou ensinar o que é respeito a esse bastardo cabeça de fogo. - Parecendo estar irritado por ter de reiniciar, ele começou o feitiço
outra vez.
Tente acalmar os ânimos e olha o que acontece, pensou Han. Ele pegou o arco e encaixou uma flecha, apontando para o peito de Bayar.
- Ei, Micah - chamou. - Tá vendo isso aqui? Cale a boca ou eu atiro.
Bayar estreitou os olhos para Han, como se estivesse novamente surpreso em vê-lo. Talvez percebendo que, de fato, estaria morto antes que pudesse terminar o feitiço, o mago soltou o amuleto e ergueu as mãos.
Ao ver o arco de Han, Miphis e Arkeda tocaram os cabos das espadas. Mas Dançarino encaixou uma flecha no próprio arco, e os dois magos ergueram as mãos também.
- Decisão inteligente - comentou Han, concordando com a cabeça. - Acho que as bruxarias são mais lentas que as flechas.
- Você tentou me matar - disse Bayar a Dançarino, como se estivesse espantado que tal coisa pudesse acontecer. - Você faz ideia de quem eu sou? Meu pai é o Grão Mago, conselheiro da rainha. Quando ele descobrir o que vocês fizeram...
- Por que você não corre de volta a Lady Gris e conta tudo a ele? - retrucou Dançarino,
indicando a trilha que descia. - Vá em frente. Vocês não podem ficar aqui. Saiam da montanha. Agora.
Bayar não queria ceder com os dois amigos presentes.
- Não se esqueçam - comentou o mago baixinho, mexendo no amuleto. - O caminho montanha abaixo é bem longo. Qualquer coisa pode acontecer nessa trilha.
Malditos ossos, pensou Han. Ele já fora emboscado por vezes demais nas ruas e becos de Fellsmarch. Conhecia valentões bem o bastante para reconhecer Bayar como um deles. Esse garoto iria feri-los se pudesse, e não o faria jogando limpo.
Mantendo a corda do arco esticada, Han apontou o mago com o queixo.
- Você, tire o seu faz-feitiço - ordenou. - Jogue no chão.
- Isso? - Bayar tocou a joia de aparência malévola que lhe adornava o pescoço. Quando Han indicou que sim, o rapaz balançou a cabeça. - Você não pode estar falando sério - rosnou, cerrando a mão em torno do amuleto. - Você sabe o que é isto?
- Acho que sim - respondeu Han, gesticulando com o arco. - Tire e jogue no chão.
Bayar ficou paralisado, cada vez mais pálido.
- Vocês não vão conseguir usá-lo, sabiam? - argumentou, olhando Han e Dançarino alternadamente. - Se vocês o tocarem, serão incinerados.
- Vamos nos arriscar - afirmou Dançarino, lançando um olhar de relance ao companheiro.
O feiticeiro estreitou os olhos.
- Vocês não passam de ladrões, então - zombou. - Eu devia saber.
- Use a cabeça - argumentou Han. - O que eu ia conseguir ganhar com isso aí? Eu só não quero ter que voltar para casa olhando para trás o tempo todo.
Arkeda se inclinou para Bayar e murmurou na língua do Vale:
- Melhor entregar. Você sabe o que eles dizem dos cabeças de fogo. Que eles cortam nossas gargantas, bebem o sangue e nos dão de comer aos lobos, para que ninguém encontre os ossos.
Miphis concordou com um aceno vigoroso de cabeça.
- Ou então eles nos usam nos rituais deles. Vão nos queimar vivos. Sacrificar a gente para a deusa deles.
Han trincou os dentes, lutando para manter a surpresa e a diversão ocultas. Parecia que os bruxos tinham motivos próprios para temer os clãs.
- Eu não posso entregar o amuleto a eles, seus idiotas - sibilou Bayar. - Vocês sabem por quê. Se meu pai descobrir que eu o peguei, todos nós seremos punidos.
- Eu falei para você não pegar - murmurou Arkeda. - Eu falei que era uma má ideia. Só porque você queria impressionar a princesa Raisa...
- Você sabe muito bem que eu não teria pegado o amuleto se nós tivéssemos permissão de ter os nossos próprios - afirmou Bayar. - Este foi o único que eu... O que vocês estão olhando?
- interpelou o mago, percebendo o interesse de Han e Dançarino na conversa e talvez compreendendo pela primeira vez que eles entendiam a linguagem das terras baixas.
- Estou olhando alguém que já está encrencado que só piora tudo a cada minuto - zombou Han. - Agora jogue o amuleto.
Bayar fitou Han com raiva, como se estivesse vendo o rapaz pela primeira vez.
- Você não é nem dos clãs. Quem é você?
Han era esperto o bastante para não dizer o nome a um inimigo.
- Me chamam de Navalha - respondeu, pescando um nome na memória. - O dono da rua de Ponte Austral.
- Navalha, você diz. - O mago tentou fuzilar Han com o olhar, mas não conseguia fixar os olhos nele. - É estranho. Há algo de... Você parece... - Bayar parou de falar como se tivesse
perdido o fio da meada.
Han mirou ao longo da flecha, sentindo o suor escorrer por entre as omoplatas. Se Bayar não cedesse, ele teria que decidir o que fazer em seguida. Naquele momento, não tinha a menor ideia.
- Vou contar até cinco - anunciou, mantendo a expressão de bandido de rua. - Então
vou meter uma flecha no seu pescoço. Um.
Com um movimento rápido e agressivo, Bayar arrancou a corrente por sobre a cabeça e atirou o amuleto no chão. O objeto retiniu de leve ao atingir o solo.
- Quero ver você pegar - desafiou o feiticeiro, inclinando-se para frente na sela. - Eu te desafio.
Han transferiu a atenção do mago ao faz-feitiço, sem saber se deveria acreditar ou não.
- Fora! Fora daqui! - exclamou Dançarino. - Acho melhor vocês pensarem bem em como vão apagar esse incêndio. Se não, eu garanto que a rainha não vai ficar nada feliz, mesmo que ela tenha pedido para vocês colocarem fogo aqui.
Bayar encarou Dançarino por um momento, com os lábios tremendo para conter uma resposta. Então virou bruscamente a cabeça do cavalo e cravou os calcanhares nos flancos da montaria. Animal e cavaleiro dispararam encosta abaixo como se estivessem mesmo tentando alcançar o fogo.
Arkeda seguiu o líder com o olhar, mas então virou-se para Dançarino, balançando a cabeça.
- Seus idiotas! Como ele vai apagar o incêndio sem o amuleto? - O rapaz virou o cavalo, e os dois magos seguiram Bayar num passo um pouco menos imprudente.
- Tomara que ele quebre o pescoço - murmurou Dançarino, observando os três feiticeiros.
Han finalmente respirou e liberou a tensão da corda do arco, transpassando-o pelo ombro.
- Que história foi aquela com o seu nome do Vale? Você já conhecia o Bayar?
Dançarino meteu a flecha de volta na aljava.
- E de onde eu conheceria um bruxo?
- Por que ele disse aquelas coisas sobre o seu pai? - insistiu Han. - Como é que ele sabe que...
- Como é que eu vou saber? - retrucou Dançarino, com uma expressão dura e furiosa no rosto. - Esquece isso. Vamos embora.
Obviamente, Dançarino não queria falar daquilo. Certo, pensou Han. Ele não tinha direito de reclamar, já que guardava tantos segredos também.
- E esse negócio? - Han se agachou e estudou o faz-feitiço cuidadosamente, com medo de tocá-lo. - Será que ele estava blefando? - O rapaz olhou para Dançarino, que observava de uma distância segura. - Quer dizer, você acha que ele precisava mesmo dessa coisa para apagar o fogo?
- Deixe isso aí - desconversou Dançarino, estremecendo. - Vamos sair daqui.
- Aquele bruxo não queria largar esse troço - refletiu Han. - Deve ser valioso. - Han conhecia negociantes de artefatos mágicos em Feira dos Trapilhos. Tinha feito negócios com eles uma ou duas vezes, quando ainda vivia nas ruas. Um ganho como esse poderia pagar o aluguel por um ano.
Você não é um ladrão. Não mais. Se ele repetisse isso vezes suficientes, talvez acreditasse.
Mas ele não conseguiria deixar o objeto ali. Havia algo de malévolo, mas fascinante, naquele amuleto. Ele emanava poder como o calor de um fogão num dia frio. Aquecia o rosto do rapaz, fazendo com que o resto do corpo parecesse gelado.
Usando um graveto, Han levantou o amuleto pela corrente. O objeto ficou pendurado, girando hipnoticamente ao sol, uma pedra verde translúcida habilmente entalhada num emaranhado de serpentes com olhos de rubi. A haste era encimada por um diamante de corte redondo, brilhante, maior do que Han jamais vira, e os olhos de rubi eram de um vermelho
sangrento.
Han tinha negociado joias, ocasionalmente, e percebeu que a habilidade na execução da peça era altíssima, e as pedras, de primeiríssima qualidade. Mas a atração exercida por ela ia além da
soma das partes.
- O que você vai fazer com isso? - Dançarino perguntou, atrás do amigo, com a voz carregada de reprovação.
Han encolheu os ombros, ainda observando a joia girar.
- Sei lá.
Dançarino balançou a cabeça.
- Seria melhor jogar isso pelo barranco. Se Bayar pegou o faz-feitiço sem permissão, deixe que ele se vire para explicar o que aconteceu.
Han não conseguiu conceber a ideia de jogar o amuleto fora. Não parecia uma boa ideia deixá-lo onde pudesse ser encontrado por alguém, talvez até uma das crianças do Campo.
Ele pegou um pedaço de couro na bolsa e o abriu no chão. Largou o amuleto no meio, embrulhou-o cuidadosamente e o meteu na bolsa. O tempo todo, o rapaz se perguntava como tinham se metido naquela situação. Como foi que ele e Dançarino acabaram num impasse
violento com magos? Qual seria a conexão entre eles e Dançarino? Talvez fosse só mais um evento numa longa sequência de má sorte. Han sempre parecia se meter em problemas, por mais que tentasse evitá-los.

O Rei DemônioOnde histórias criam vida. Descubra agora